Foi já num século passado – mas a nós parece ontem – que a actriz, cançonetista e em suma artista Florbela Queiroz, nome abreviado de Florbela de Carvalho Azevedo Queiroz, se firmou e afirmou como um dos maiores símbolos sexuais nacionais, vezo que pelos vistos mantém, parece, já que ainda há pouco foi notícia de que partilhou no Facebook uma fotografia de si toda nua, dentro de uma piscina, acompanhada dos ditos “Aqui posso andar nua que ninguém me vê. Tomo banho nua e apanho sol nua aqui no jardim.” Se não de todo revolucionário, o gesto teve o seu quê de rebelde e, por isso, foi de imediato saudado pelos magazines da especialidade como prova de que Florbela é “uma mulher forte e independente” e “livre de preconceitos” (SapoLifestyle, de 3/7/2023)..Meses antes, quando perfez 80 anos (nasceu ainda Hitler era vivo, em 10 de Fevereiro de 1943, dia em que Gandhi iniciou a sua primeira greve de fome), a actriz afiançou ao Jornal de Notícias que “a cabeça está muito bem”, coisa de que não duvidamos, mas que “o resto nem tanto”, facto que lamentamos, ainda que confortados pela certeza de que isso a não impediu de dar banho seja à cabeça, seja também ao resto, e ambos em pêlo. .Recuando um ror de décadas, perceberemos que não é de hoje, longe disso, a sua atracção por piscinas e que, num cativante programa RTP de 1972, “Um dia com… Florbela Queiroz”, que peço muito que vejam, pois está no YouTube, observamo-la já a banhar-se na sua charca doméstica, com uns tórridos calções curtíssimos (e sapatos com malmequeres), na companhia de duas feras, a saber a Biluca e o Franjinhas, ambos caniches, sob o olhar mortiço, mas atento, de um são-bernardo dengoso, o Snoopy, na casota do qual Florbela por vezes dormia com gosto. .Nesse ensejo, a estrela afirmou que teve uma infância feliz e normal, “com sapatos, com pão, com sopa, com escola”. Filha de pais humildes, João Ariosto de Azevedo Queiroz (que ela diz ser “um Adónis”) e de Maria de Jesus Carvalho Queiroz, que a queriam advogada, teve por figura de referência a sua avó materna, Aurora. Sonhando ser bailarina, foi discípula da grande Margarida de Abreu, dos três aos doze anos, e, a partir dos 13, acumulou os estudos com o curso de dança clássica e teatro do Conservatório Nacional, onde foi contemporânea de Nicolau Breyner, Octávio Matos e Irene Cruz. Em 1957, ainda aluna, e com apenas 14 anos, estreou-se na peça “As Bruxas de Salém”, no Teatro Nacional D. Maria II, após ter vencido uma árdua selecção entre inúmeras candidatas, escolha que ela, sempre humilde, atribui à sua figura física, não aos dotes teatrais. .No ano seguinte, 1958, estreou-se na televisão, em “O Landau de Seis Cavalos”, dirigido por Álvaro Benamor, e no folhetim “Enquanto os Dias Passam”, uma proto-telenovela onde contracenou, entre outros, com Camilo de Oliveira, Catarina Avelar, Lourdes Norberto e Fernanda Borsatti, e em que fazia de “Mariazinha”, a namoradinha de “Xico”, interpretado por João Lourenço, um par que alcançou tal êxito que ambos tiveram de passar a ser escoltados por guarda-costas nas ruas, tantos eram os que os queriam agarrar, e até rasgar as vestes. .Logo depois, em 1959, ingressou na Companhia do Teatro Nacional Popular, que Ribeirinho dirigia no Trindade, passando também pela Companhia do Teatro Alegre, dirigida por Henrique Santana. No Trindade, ainda conheceu “o sr. António Silva”, imagine-se, com o qual não chegou a trabalhar, mas que lhe deu vários conselhos, que Florbela seguiu com afinco em toda a sua carreira. .Foi também nesse ano de 1959 que se estreou no cinema, num filme intitulado “Let’s Discover Portugal”, sobre o qual não conseguimos apurar nada, mesmo nadinha, ao contrário do que sucede com outras fitas onde Florbela entrou, como “O Elixir do Diabo”, de 1962, uma inenarrável co-produção luso-americana onde contracenou com Nicolau Breyner, Ruy de Carvalho, Jacinto Ramos ou Rogério Paulo; “Pão, Amor… e Totobola”, de 1963, de Henrique Campos, comédia palerma sobre um milionário súbito, onde actuou novamente ao lado de Nicolau Breyner, mas também de Carlos Queiroz, seu irmão, no papel de “Zequinha”, Óscar Acúrcio, Fernanda de Sousa, Lídia Franco e Natalina José; “A Canção da Saudade”, musical de 1964, protagonizado pelo grande, enorme, Victor Gomes, estrela do rock português e dos lendários Gatos Negros, e onde entravam de novo Nicolau e o seu irmão Carlos, além de Lídia Franco, Mara Abrantes, Madalena Iglésias, Simone de Oliveira ou Tony de Matos; “Fado Corrido”, de 1964, um filme de Jorge Brum do Canto inspirado em conto de David Mourão-Ferreira, em que aquele interpreta o habitual papel de um fidalgo apaixonado por uma cantadeira, in casu Amália, na pele de Maria do Amparo; “Sete Balas para Selma”, de 1967, realizado por António de Macedo, no qual incarnou uma agente secreta envolvida numa complicada trama internacional pela posse de uma aparelhagem electrónica que permitia dominar o mundo e ameaçar a paz, bastando esta sinopse para compreendermos as violentas críticas que a película mereceu da banda de João César Monteiro (que a considerou uma obra “vendida ao regime”), Fernando Lopes e António-Pedro Vasconcelos; e, finalmente, “Um Campista em Apuros”, comédia policial assinada por Herlander Peyroteo, e estreada em 1968, cujo enredo é bem um retrato das mudanças que então o país sofria, pois mete um campista em Monsanto à volta com duas belas estrangeiras que de Marbella tinham trazido uma mala com jóias no valor de 200 mil dólares. No elenco, frondoso, o eterno Nicolau, o malogrado António Feio, o flamejante Filipe La Féria (no papel de “Pico”), o citado João Lourenço, Mirita Casimiro e Manuel Cavaco, just to name a few. .Apesar de vários filmes, foi no teatro, sem dúvida, que Florbela mais estrelejou e brilhou, fazendo coisas sérias, mas também muita revista, em obras cujos títulos surpreendiam pela abundância de pontos de exclamação, tais coimo “Põe-te a Pau!”, de 1963, no Maria Vitória, “Na Brasa!”, no ano seguinte, em cena no Capitólio, “É Canja!”, idem, “Zero, Zero, Zé! – Ordem Pr’a Pagar!, no Variedades, 1966, “E o Zé Faz Tudo!”, também no Variedades, em 1966, “Sexo Nunca, Somos Britânicos!”, no Capitólio, 1973, o revolucionário “Força, Força, Camarada Zé!”, Maria Vitória, 1975, até aos mais recentes “Ol(h)á Florbela!”, de 2016, “Que Grande Caldeirada!”, de 2019, ou “Olha Que Duas”, de 2022. Do seu currículo fazem ainda parte coisas como “Vai de Em@il a Pior”, “Crise, Sexo e Facebook” e “Ora Vira e Troika o Passos”, compreendendo-se assim, sem grande esforço, o motivo pelo qual já em 1972, no citado “Um dia com…”, Florbela tenha dito que estava cansada da revista e das suas obscenidades patetas e que não fazia o teatro de que gostava: “adorava fazer Shakespeare, nem que fosse para entregar uma cartinha.” .Nesse programa, Florbela começou por cantar uma melodia pavorosa sobre uma “menina de olhos tristes, sob a franja doirada”, para confessar, logo a seguir, que era um retrato da sua pessoa, considerando-se “uma mulher triste, profundamente triste”. Surpreendia pela humildade, por uma modéstia tocante, que se prolonga até hoje, patente em entrevistas recentes. Dizia, já então, que o seu talento “não ia por aí além”, que cantava desafinado, que era “uma mulher profundamente simples”. Definia-se como “perfeitamente burguesa, no bom sentido”, teve gosto em mostrar a casa, confortável, não opulenta, em exibir a piscina, então um traço de luxo. Nas horas vagas, contou, cozinhava o almoço e o jantar, arrumava a casa, lavava a louça, punha a roupa na máquina, fazia tricô, pintava uns quadros, “bastante maus”, e escrevia “uns poemazitos, que também não são lá grande coisa”. Acrescentou, melancólica, que “no fundo, no fundo, eu não faço nada bem feito, mas lá vontade não me falta”; “eu gostava de fazer qualquer coisa bem feita, pode ser que um dia consiga fazer alguma coisa que me agrade plenamente”. De permeio, cantou Gedeão, um horror, mas o ponto mais interessante é que Florbela, à época uma moça de 29 anos, fazia de dumb blonde ou Bardot portuguesa, mas tinha a consciência plena de que, do alto dos seus 1,58m, era um ícone carnal bestial, mas que lucrava com isso: “tenho este ar frívolo, pois vendo a franja e os dentes há muitos anos, é verdade que vendo os dentes e a franja, mas ganho bem para os vender, é por isso que consigo ter esta casa, não é o palácio de Queluz, não é um palácio, mas é a minha casa, é minha, e sou feliz aqui, tenho vendido os dentes e a franja por alguma coisa útil”. Chapeau. .A seu lado, à guitarra, de bigodes antológicos e olhar matador, espraiava-se Norberto de Sousa (ou Norberto de Sousa Matias), seu segundo marido, com quem se casaria em 1976, e do qual teve um filho, Manuel João Matias, de que adiante se falará. No final do programa, Florbela confidenciou que “a televisão tem para mim um significado muito especial”. Acompanhou a TV desde os seus alvores, recordou com saudade tudo quanto nela fez, sobretudo “Enquanto os Dias Passam”, que a lançou no estrelato. “Se pudesse, era só actriz de televisão, aquela máquina encanta-me, muito mais do que o cinema, não gosto de fazer cinema”. Lamentou não ser mais convocada, ofereceu-se descaradamente aos responsáveis pela RTP e mandou até “um beijinho” ao “sr. dr. Ramiro Valadão” (“se o sr. dr. Ramiro Valadão me permitir um beijinho…”). .Vítor Higgs/DN.Foi no pequeno ecrã, com efeito, que Florbela Queiroz se tornou uma figura próxima e muito querida de gerações e gerações de portugueses. Desde 1958 até hoje – mais de 65 anos, portanto –, fez séries e teleteatro, programas infantis, variedades, humor, sitcoms, telenovelas, tudo coisas ligeiras, porventura mais leves daquelas que ela gostaria, mas a vida é mesmo assim. Nos tempos mais recentes, “Nelo e Idália” (com Herman e Maria Rueff), “As Lições do Tonecas” (com o malogrado Luís Aleluia), “A Mulher do Senhor Ministro” (da autoria de Ana Bola), “Polícias”, “Reformado e Mal Pago”, “Pisca Pisca” e “Arroz Doce”, ou as novelas “Origens” (a herdeira Júlia, casada com Francisco, encarnado por Curado Ribeiro), “Passerelle” (no papel de Célia, a amante torcionária de Luís), “Na Paz dos Anjos”, “Desencontros” (no papel de Josefa Branco Matias) ou “Vidas de Sal” (participação especial não creditada)..Nos anos 1990, entrevistada pelo ilusionista Luís de Matos, confessou, uma vez mais, que era a principal crítica de si própria, acrescentando que gostava de toda a gente, mesmo dos que lhe queriam mal. Confidenciou, contudo, que foi sempre “mal-amada” e que todos os homens que com ela se relacionaram o fizeram por interesse, jamais por amor autêntico. Lamentou não ter tido juventude, pelo menos na idade certa; ainda assim, mostrou-se muito novíssima, dizendo adorar animais, de gostar de rap e de sair à noite com o filho, de ver os êxitos da MTV, de praticar vela e karaté, de consultar Paulo Cardoso para saber o destino nos astros. .Estes, porém, nem sempre lhe foram benéficos. Em 2013, teve de fugir da sua casa, na Parede, por não suportar mais as violências e os insultos do filho, Manuel João Matias, editor de imagem da SIC, e da nora, Marília Barros. Dois anos, depois, por ordem do tribunal, pôde regressar a casa, mas esta estava uma lástima, completamente vandalizada. Desabafou no Facebook: “Amigos, acabou o julgamento com penas de prisão suspensa, afastamento total de mim e a devolução da minha casa! GANHEI! Mas por dentro perdi porque a pessoa que mais amo no mundo já não existe! Beijinhos a todos os que me apoiaram, me deram coragem e força para ir adiante estes dois anos” (cf. Move Notícias, de 11/1/2015). A casa seria recuperada graças à ajuda de amigos e beneméritos (angariou 900 euros num crowdfunding do Facebook) e do programa “Querido, Mudei a Casa!”, e a actriz, passada a fase de maior crispação com Manuel – na qual chegou a redigir um testamento em que o proibia de a visitar no hospital, caso fosse internada, e a participar no seu funeral –, acabou por se reconciliar com ele, após este ter-lhe pedido perdão no final de um espectáculo. Depois, tragicamente, sofreu a dor maior e mais cruel de todas, com a morte súbita do seu filho, aos 44 anos, vitimado por um ataque cardíaco fulminante em Maio de 2022. Em conversa com Manuel Luís Goucha, disse que o enterro do filho foi o primeiro funeral a que compareceu na vida, mas continua a não acreditar na sua morte e ainda hoje tem a roupa dele no armário, esperando que um dia regresse. .Queixando-se há muitos anos de que não lhe davam nem dão trabalho, revelou a Maria João Gama, no programa “Heranças d’Ouro”, de 2/4/2006, que, à falta de emprego, se dedicou à tarologia e ciências esotéricas, e chegou a dar o seu número de telefone para os eventuais interessados nas suas consultas. Caminhos estranhos os daquela que, nas suas próprias palavras, chegou a ser a “coqueluche do país”, nos idos de 1960-70, e que agora, pelos vistos, ganha a vida debruçada sobre cartas astrais e baralhos de Marselha. Vive só, mas não por gosto, diz não ter amigos íntimos, apenas colegas de trabalho, de quem aliás gosta muito. Há quase trinta anos que não tem marido, companheiro ou namorado, confessou há pouco numa das tardes do Goucha. Durante décadas, e porventura até hoje, só consegue adormecer abraçada a um velho urso de peluche, o seu amor mais fiel. .Florbela Queiroz foi a primeira mulher portuguesa a exibir um seio em placo, numa revista do Parque Meyer, no ano de 1975, pois claro. Vê-la em “Pão, Amor e Totobola”, de 1963, a dançar o twist em cima de uma mesa, de saia travada e de botas brancas, é mergulhar um pouco na história recente de Portugal e nas fundas transformações que o país sofreu nas últimas décadas, sobretudo no campo dos costumes e das mentalidades. Há tempos, não muitos, Maio de 2023, a actriz alarmou os fãs ao escrever nas redes: “hoje é o pior dia da minha vida. Faz hoje um ano que o meu amado filho partiu! Só peço a Deus para ir ter com ele depressa! Já não faço nada aqui.” Logo se ergueram os amigos em alvoroço, desmentindo-a com firmeza, jurando que não e não, dizendo que Florbela faz falta, coisa por demais evidente, gritante, e que aqui hoje repetimos, sem favor de espécie alguma. Pelo contrário, fazemo-lo com vigor e gosto, ainda lembrados daquela franja e dos dentes, daqueles seus olhos grandes e tristes, daquilo que no fundo é dela, Florbela, mas que é também o que fomos. .*Prova de vida (30) faz parte de uma série de perfis .Historiador