Fazer teatro em horário pós-laboral com Lisboa na mente
Teresa sempre gostou de cantar, "desde pequenina, no tempo em que andavam os ceguinhos na rua". Gostava de ouvir as canções na rádio e de as cantar enquanto trabalhava como modista. De vez em quando, alguém a desafiava: "Ó Teresinha, cante aquela!" E ela cantava, sem nunca sonhar sequer a subir a um palco. Um dia, a vizinha Lurdes, que a ouvia a cantar da sua casa, perguntou-lhe se ela não queria participar num espetáculo de teatro. E foi assim que, aos 76 anos, Teresa D'Almeida se juntou ao TeatrAção para o espetáculo Lisboa-na-Mente. Põe o xaile nos ombros e canta, muito à sua maneira, os fados À Beira do Cais e Maria Lisboa, mas também faz umas breves participações noutras cenas. "A parte de cantar é fácil. O resto para mim é mais difícil, estou sempre com medo de me enganar. Mas eles têm-me ajudado", explica Teresa. E tem-se divertido, admite.
Como este é um grupo de teatro amador, os ensaios acontecem às quartas e quintas-feiras à noite, entre as 20.30 e as 23.00, no Eka Palace, uma associação cultural que fica num antigo palácio na Vila Maria Luísa, em Xabregas, Lisboa. Dos seis atores apenas um tem uma carreira mais ligada à televisão e ao cinema, os outros são um professor de Francês, outro de Biologia, uma professora de Inglês, uma jurista e uma enfermeira. "É muito difícil harmonizar as profissões com os ensaios", conta Ângelo Ferreira, o professor de Francês, de 55 anos. "Às vezes os ensaios terminam à meia-noite e, no dia seguinte, às oito da manhã eu tenho de me apresentar fresco que nem uma alface perante o meu público", brinca.
Ângelo começou a fazer teatro na Faculdade de Letras e desde então nunca desistiu de conciliar a sua profissão com esta paixão. Tal como ele, também Isabel Moreira, professora de inglês, de 57 anos, sonhava desde pequenina em fazer teatro e chegou a integrar o Teatro Universitário do Porto. Mas os pais não lhe deram qualquer hipótese. "Achavam que ser atriz não era vida", conta Isabel. Ela acabou por desistir. Até que em 2002, quando se mudou para Lisboa, e numa reunião de encarregados de educação na escola do filho mais velho, conheceu a atriz e encenadora Ângela Pinto. "Começámos a falar e a certa altura ela convidou-me para fazer um curso. Acabei por fazer quatro cursos, de seguida. E depois fomos trabalhando. Muito com as produções A Tenda. Foi aí que praticamente nos conhecemos todos. Foi o realizar de um sonho de menina, algo que eu achava que já não ia concretizar com esta idade", conta Isabel.
Este grupo já existe, informalmente, há uns seis ou sete anos. "Fomo-nos encontrando em vários projetos. Uns vão saindo, outros vão entrando. Mas este grupinho já está junto há algum tempo", explica Ângelo Ferreira. "A Ângela foi o motor", confirma Isabel Moreira, "Mas temos tido oportunidade de trabalhar com gente muito boa. O Helder Gamboa, o Jorge Fraga, Mónica Garcês, Paulo Oom, Paula Guedes, Ana Moreira. Tem sido uma aprendizagem muito grande."
"Tem sido muito bom e gratificante, apesar de a todos nos sair do pelo", conta a professora de Inglês. "À noite, já cansados, a levar na cabeça dos encenadores porque não nos lembramos das marcações de um dia para o outro... Todos temos profissões bastante exigentes mas a paixão faz-nos ultrapassar tudo. A coisa corre sempre bem."
Neste momento, o TeatrAção está a ensaiar o seu próximo espetáculo, intitulado Lisboa-na-Mente. O grupo queria fazer um espetáculo que falasse deste momento da cidade onde todos moram: a "turistificação" e tudo o que isso trouxe de bom e de mau. "Lisboa é aquilo que se dizia há muito tempo de Londres: um melting pot", diz Isabel. "Quase não se ouve falar português nas ruas. Não que isso tenha só desvantagens: essa troca de culturas é fundamental no mundo de hoje, todos fazemos parte deste mundo, e dá cor à cidade, mas tem abalado a vida de muita gente. O preço da habitação disparou de tal modo que nem sei quem é que consegue acompanhar. Não sabemos quem vão ser os nossos vizinhos. E eu gostava de continuar a ter as minhas vizinhas de 70 e 80 anos."
O grupo desafiou alguns amigos a escrever textos sobre este assunto e depois convidou a atriz Lucinda Loureiro para orientar o processo. Os ensaios começaram em fevereiro. "Não são textos com grande conflito dramático, uns são mais poéticos, outros mais descritivos, outros quase manifestos - a grande dificuldade foi juntar isto tudo, não queria fazer uma coisa do tipo revista", explica Lucinda Loureiro. Em cena, tanto podem aparecer Camões, Fernando Pessoa e Cesário Verde, escritores que são também estátuas que observam e comentam a cidade à sua volta, como os turistas que falam muitas línguas e tiram selfies em todos cantos, como ainda as senhoras que limpam as ruas, os portugueses que vieram de África e demoraram a sentir-se em casa, os que vieram de outros cantos do país em busca de uma vida melhor, e aqueles que hoje se veem obrigados a deixar Lisboa por não terem como pagar a casa onde viviam. Há um amola-tesouras. E jovens que ouvem hip hop. Novos e velhos lisboetas. As histórias vão-se cruzando com os barulhos da cidade, enquanto os seis atores mudam de roupa e de personagem mesmo à nossa frente.
"É Lisboa com histórias dentro mas, para mim, é também como se fosse um sonho, disruptivo, estamos num local e depois passamos para outro e vamos apanhando as histórias que acontecem ali", explica a encenadora.
Os ensaios estão a correr bem e o grupo gostaria de estrear Lisboa-na-Mente em outubro, mas, até agora, ainda não têm sala onde se apresentar. "Temos recebido muitas negas, e isso é muito desmotivador", conta Ângelo Ferreira. Noutros anos, já se apresentaram no Teatro da Comuna e na Escola das Mulheres, por exemplo. Fazem geralmente oito récitas (duas semanas, de quinta a domingo). "Para os nossos amigos e familiares, sobretudo. Mas também vêm algumas pessoas que não nos conhecem, e isso é bom."
"Nós não queremos ganhar dinheiro com isto. O dinheiro que conseguimos é para os sítios que nos recebem e para quem nos encena, obviamente." Trata-se, acima de tudo, de fazer algo que lhes dá prazer e de o partilhar com os outros. É isso, afinal, que define os artistas amadores. Neste grupo, além de Ângelo Ferreira e Isabel Moreira, os artistas são Ivo Meco, João Duarte, Lurdes Garcia, Maria d'Oliveira e a fadista Teresa d'Almeida.
Ontem à noite, o grupo fez um ensaio aberto - para mostrar aos amigos o que andam a preparar e também para terem algum feedback. "Para nós é necessário, porque ao fim de uns meses começa a ser desmotivador não sabermos ainda quando poderemos estrear", diz Isabel Moreira. Como sempre, antes de se apresentar ao público, Isabel estava nervosa. "Hoje não dormi, ainda não comi. Mas também dá muita pica. É bom. Sinto-me viva."