Alexander Kuznetsov em Two Prosecutors: actor brilhante, filme notável.
Alexander Kuznetsov em Two Prosecutors: actor brilhante, filme notável.

Fantasmas da história assombram Cannes

A competição do Festival de Cannes já deu a conhecer um grande filme: Two Prosecutors, do ucraniano Sergei Loznitsa, é um retrato contundente da repressão na URSS durante o período estalinista.
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Pergunta de algibeira: será que as convulsões da geopolítica afetam as dinâmicas do cinema, da produção à difusão? A resposta é claramente afirmativa, até porque a história dos filmes está toda ela pontuada por muitas interacções desse género. Ficando por um exemplo básico, lembremos que não é possível conceber as primeiras décadas de James Bond no cinema sem falar na Guerra Fria. Não admira, por isso, que Cannes não seja estranho a tais factos e especulações — e muito para lá das veementes palavras anti-Trump proferidas por Robert De Niro ao receber a sua Palma de Ouro honorária.

Alexander Kuznetsov em Two Prosecutors: actor brilhante, filme notável.
Robert De Niro apela a defesa com "paixão" da liberdade dos EUA face a “presidente inculto”

O Mercado do Filme pode servir de esclarecedor sintoma. Este ano a bater recordes de frequência — com mais de 15 mil inscritos provenientes de 140 países —, começou assombrado pelas tarifas anunciadas por Donald Trump. É certo que as declarações públicas de produtores, distribuidores e exibidores têm tanto de perplexidade como de hesitação, mas não deixam de envolver, explicitamente ou não, uma inquietação de fundo: se se consumarem as taxas (elevadíssimas) a pagar pelos filmes “estrangeiros” para entrarem no mercado dos EUA, isso vai de facto defender a indústria americana ou, bem pelo contrário, dinamitar todo um sistema global de interações entre produtores e produtos de muitos países e, em boa verdade, de todos os continentes?

São muitos os fatores que complicam esta conjuntura, não parecendo possível adoptar uma diretriz única e unívoca. Nesta quarta-feira, na sua edição “cannoise”, a Variety reavaliava a situação da distribuição dos filmes “made in USA” no mercado russo, ultimamente afetada pelas sanções económicas impostas à Rússia por causa da guerra na Ucrânia. Responsáveis do estúdio Lionsgate mostram-se mesmo dispostos a adoptar uma postura “caso a caso” para, para já, tentar lançar nas salas russas o filme Ballerina, uma derivação da “franchise” John Wick, protagonizada por Keanu Reeves, agora com Ana de Armas no papel central. Entretanto, o novo capítulo de Missão Impossível (cuja sessão de imprensa está marcada para a manhã de hoje), filme “global” por excelência, não tem, de momento, qualquer perspetiva de chegar aos espetadores russos.

Neste novelo de alianças, umas fortes, outras periclitantes, a produção europeia continua a resultar de muitos investimentos cruzados. Este ano parecem mesmo repetir-se os genéricos, de abertura ou fecho, que nos informam sobre a variedade de países ligados à gestação de cada projeto (naturalmente, com uma presença muito frequente da França). Exemplo emblemático poderá ser a nova realização do ucraniano Sergei Loznitsa, Two Prosecuters, resultante da colaboração de nada mais nada menos que seis países europeus. A saber: França, Alemanha, Países Baixos, Letónia, Roménia e Lituânia.

Entenda-se: nada disto sugere, muito menos implica, qualquer juízo de valor automático sobre cada filme nascido neste contexto plural. Em termos práticos, diria que não será arriscado considerar que, seja qual for o palmarés, Two Prosecutors vai ficar como um dos grandes títulos desta 78ª edição de Cannes.

Documentário & ficção

Loznitsa, convém lembrar, é também um talentoso documentarista, com alguns notáveis trabalhos sobre a história recente da Ucrânia — lembremos apenas o exemplo de Maïdan/A Praça (2014), sobre a agitação social que conduziu à queda do presidente Viktor Yanukovych. Desta vez, aborda a URSS em 1937, no auge da repressão estalinista, seguindo a trajetória de Alexander Kornev (brilhante composição de Alexander Kuznetsov), um procurador que tenta fazer valer a lei que rege as prisões dos que foram considerados “ameaças sociais”, investigando em particular a situação de um dos muitos prisioneiros que terá sido torturado pela NKVD, a polícia secreta do regime comunista.

À sua maneira, Two Prosecutors é um filme histórico em que os guardas das prisões e todos aqueles que garantem a violência visceral da própria burocracia são os fantasmas muitos reais que mantêm um sistema de poder de absoluta desumanização. Uma rima interessante está em Sound of Falling, da alemã Mascha Schilinski, outro título da competição em que as sagas paralelas de quatro personagens femininas definem um painel de quase um século da história da Alemanha — o tom é algo maneirista, por vezes francamente esquemático, mas também nos confronta com memórias traumáticas cujos ecos persistem no nosso presente.

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