Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant no filme Um Homem e uma Mulher (1966), de Claude Lelouch, são os rostos simbólicos do cartaz duplo, ou melhor, dos dois cartazes da 78ª edição do Festival de Cannes que começa hoje, encerrando no dia 24. A valorização das memórias não exclui, bem pelo contrário, a renovada promessa de muitas estrelas na passadeira vermelha que conduz ao Grande Auditório Lumière. E não tenhamos dúvidas que essas estrelas não vão faltar, a começar por Tom Cruise que voltará à Côte d’Azur para apresentar o oitavo e (diz-se) último título da saga Missão Impossível. . Aí começa o paradoxo e o fascínio de um festival que consegue desenhar essa bizarra quadratura do círculo que lhe permite conciliar as “regras” e as “exceções”. Dito de outro modo: Cannes não abdica de dar a ver as produções mais espectaculares sustentadas por um marketing global, ao mesmo tempo que mantém as portas abertas para uma variedade imensa em que o experimental ou o esotérico, ou apenas o totalmente desconhecido, encontram sempre o seu lugar. Sintoma a ter em conta é o facto de a aposta na Realidade Virtual — iniciada em 2017, com a apresentação de Carne y Arena, do mexicano Alejandro González Iñárritu — se ter consolidado em 2024 com a primeira “Competição Imersiva”, secção que prossegue este ano com a apresentação de mais de uma dezena de projetos que vão da projeção tradicional até à RV, passando por algumas instalações.Não esqueçamos, por isso, que o festival se mantém atento à evolução do aparato tecnológico do cinema. 2002 foi uma data determinante, com a apresentação de Star Wars – O Ataque dos Clones, a primeira super-produção do género inteiramente rodada em formato digital. Este ano, a novidade no Grande Auditório Lumière (2309 lugares) será o sistema de som Dolby Atmos — para Thierry Frémaux, delegado geral e programador do certame, será assim possível “oferecer uma experiência sem precedentes aos frequentadores do festival, mas também aos cineastas e aos engenheiros de som.” Alguns números são eloquentes: a sala passa a contar com 128 altifalantes, tendo sido utilizados 5 km de cabos para a montagem do novo sistema. . No polo complementar de tudo isto, a secção de Clássicos — com cópias restauradas e documentários sobre a história do cinema — continua a ter um peso crescente na relação do festival com o património cinéfilo. Entre os títulos a exibir (num total de três dezenas) estarão restauros de Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, e Voando Sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman (ambos a completar meio século), um retrato documental de David Lynch, realizado por Stéphane Ghez, e ainda essa raridade que é Magirama, a experiência da “polivisão”, com três ecrãs, concebida por Abel Gance em 1956.Novos e “repetentes”O júri oficial, presidido por Juliette Binoche, irá tomar as suas decisões a partir de uma galeria de 22 títulos a concorrer para a Palma de Ouro (ganha, no ano passado, por Anora, de Sean Baker), deparando com os ziguezagues de uma lista que vai dos autores que já fazem parte da tradição do festival até às revelações sempre aguardadas com expectativa. Nesta perspectiva, a abertura oficial com uma primeira longa-metragem — Partir un Jour, da francesa Amélie Bonnin, —, ainda que apresentada extra-competição, sinaliza uma diretriz cada vez mais importante nas opções de programação da equipa de Frémaux no sentido da descoberta de novos valores.Este ano, entre os “repetentes” que já venceram o festival encontramos Julia Ducornaud (Titane) e Jean-Pierre & Luc Dardenne (os irmãos belgas são mesmo dos poucos que já ganharam duas Palmas, com Rosetta e A Criança). A cineasta francesa estará presente com Alpha, retrato dramático de uma adolescente que se anuncia próximo de algumas tendências recentes do género de terror; os Dardenne regressam com Jeunes Mères, centrado nas vidas que se cruzam num centro de acolhimento para jovens mães solteiras. . Na lista de concorrentes à Palma figuram também alguns nomes que, tendo sido já premiados ou não, ocupam um lugar importante na história do festival ao longo daa edições deste século XXI. É o caso do ucraniano Sergei Loznitsa, cujo novo filme, Two Prosecutors, revisita os fantasmas do estalinismo, do iraniano Jafar Panahi, com o drama social It Was Just an Accident, ou ainda do americano Wes Anderson, presente com The Phoenician Scheme, uma vez mais exibindo um elenco de nomes famosos (Benicio Del Toro, Willem Dafoe, F. Murray Abraham, Scarlett Johansson, Tom Hanks, etc.)..Na seleção oficial, mas não a concurso, encontramos também as novas realizações dos americanos Spike Lee e Ethan Coen (outra vez a solo, sem a companhia do irmão Joel). Vão apresentar, respetivamente, Highest 2 Lowest e Honey Don’t! — o primeiro um thriller protagonizado Denzel Washington, o segundo uma comédia negra com Margaret Qualley, filha de Andie MacDowell, atriz com crescente popularidade desde a sua participação no filme de Quentin Tarantino, Era uma Vez em Hollywood, que foi acontecimento central na edição de 2019 de Cannes.Na corrida para a Palma encontramos ainda, entre outros, o brasileiro Kleber Mendonça Filho (O Agente Secreto), o americano Ari Aster (Eddington), o italiano Mario Martone (Fuori), o chinês Bi Gan (Ressurection) e o iraniano Saeed Roustaee (Woman and Child). A esta lista é forçoso acrescentar Nouvelle Vague, do americano Richard Linklater, filme a suscitar alguma curiosidade cinéfila, já que nele se evoca a rodagem de À Bout de Souffle/O Acossado (1960), primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard e referência incontornável das “novas vagas” do cinema europeu.Uma Palma para De NiroPara lá do filme de abertura de Amélie Bonnin, é a secção “Un Certain Regard” (que, convém não esquecer, é parte integrante da seleção oficial) que integra a maior percentagem de primeiras obras: nada mais nada menos que nove estreantes (num conjunto de 19 títulos). Dois títulos disputam, para já, a primazia mediática, já que são assinados por atrizes americanas muito poulares: Scarlett Johansson e Kristen Stewart estarão presentes com Eleanor the Great e The Chronology of Water, respetivamente. . A meio caminho entre a celebração as estrelas e o didactismo das conversas estarão os já tradicionais encontros com nome emblemáticos do cinema internacional. Este ano marcam presença Christopher McQuarrie, realizador dos mais recentes títulos de Missão Impossível, incluindo O Ajuste de Contas Final (cuja ante-estreia mundial terá lugar em Cannes, na quinta-feira), e Alexandre Desplat, compositor francês que terá um diálogo sobre a música no cinema com o realizador mexicano Guillermo del Toro. Em qualquer caso, o destaque vai, naturalmente, para uma conversa com Robert De Niro que, hoje mesmo, na cerimónia oficial de abertura, será agraciado com uma Palma de Ouro honorária..'A Mais Preciosa Mercadoria'. Desenho animado e parábola humanista .'O Ano Novo que Não Aconteceu'. Televisão & política, ou a pedagogia de um filme romeno