Don L. vai apresentar-se em Lisboa na próxima semana.
Don L. vai apresentar-se em Lisboa na próxima semana.Foto: Isabela Gandolfo

“Falta chamar o povo para a conversa”, diz rapper brasileiro

Gabriel Linhares da Rocha, conhecido como Don L, vai fazer a primeira digressão em Portugal neste mês de maio. Fã de Valete e Slow J, músicos de gerações diferentes, releva ao DN que quer aproximar-se de artistas portugueses e de outros países lusófonos, além do desejo de criar trabalhos em conjunto.
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Como é que está a sua expectativa para a digressão em Portugal?

É a primeira vez que eu tô  indo e estou com uma expectativa que até me surpreendeu, porque os ingressos estão vendendo bem, sabe? Tem bastante fãs em Portugal, mas também recebi muitas mensagens de outros países. Estou bem empolgado e muito feliz. Vai ser bem legal sacar esse termómetro do que é meu público na Europa. Vamos ver se são só brasileiros, se tem outras pessoas, principalmente de língua lusófona. Eu quero muito conseguir chegar em outros países lusófonos também, não apenas Portugal, mas países africanos lusófonos.

Já referiu publicamente opiniões sobre o passado colonial. Como é que vê hoje a relação entre Brasil e Portugal sobre como lidar com esse passado?

O cenário colonial no mundo geopolítico mudou bastante. Hoje em dia você tem outras formas de colonialismo, como a cultura. Mas o que mais me interessa é a libertação de todos os povos. Eu sou uma pessoa de espectro político de esquerda radical. Eu acredito que a classe trabalhadora de todos os lugares do mundo precisa se levantar e assumir uma luta que é contra o sistema capitalista que a gente vive hoje, que assume essas novas formas de colonialismo no mundo inteiro. Hoje é mais complexo do que era antigamente, quando Portugal colonizou o Brasil e outros países da África. Hoje em dia, existe uma burguesia transnacional que atua em diversos países. Portugal não deixa de ser um país de um capitalismo decadente, onde acredito que existe uma classe trabalhadora superexplorada como o resto do mundo, principalmente a mão-de-obra imigrante.

Como é que vê o momento político do Brasil na atualidade?

A eleição do Lula foi um grande avanço. É sempre bom derrotar o fascismo, mas tem muitas divergências de como se dá o combate ao neoliberalismo Entendo que existe uma correlação de forças complicada para lidar com um Congresso muito conservador, muito de direita, quando não de extrema-direita. Avalio que existe uma tática aí da esquerda mais institucional, como o Partido dos Trabalhadores (PT), de como lidar com isso. O Lula é um cara que arrisca muito mais na política externa do que na política interna. Eu acredito que as pessoas que veem o Lula de fora têm uma impressão até um pouco mais de um Lula mais “radical”, assim entre aspas. Que se pronuncia a favor da Palestina, por exemplo, que eu acho muito importante. Mas, internamente, eu acho que a gente ainda precisa avançar bastante numa política mais antineoliberal. O combate ao neoliberalismo, que eu acho que é o primeiro grande inimigo dos povos, do povo trabalhador, mundialmente falando, mesmo. Não só no Brasil, acho que em todo o lugar. Essa coisa da uberização, da superexploração do trabalho, tem muito a ver com a política de austeridade, que, infelizmente, está sendo continuada pelo Governo Lula. Eu acredito que isso é o nosso principal ponto fraco nesse Governo.

Qual é a saída para isso, na suavisão?

A política institucional tem de preparar o caminho. Mas eu sinto falta de um pouco mais de iniciativas nesse sentido. Pra  começar, a gente tem um Congresso muito à direita, o que exige muita negociação. Hoje em dia a política está nos extremos, certo? As pessoas estão radicalizadas. Se plantou uma ideia, não sei como é em Portugal - me parece que existe algo parecido em Portugal. No Brasil se plantou uma ideia de que o Lula é radical, é uma esquerda radical - isso é uma coisa da extrema-direita. Eles fazem isso para puxar o espectro todo para a direita. Pintam o Lula como se fosse um cara comunista, o que não é nem perto de ser realidade. O Lula é um cara de centro. O Lula, se você for discutir com alguém em termos mais rígidos, académicos, você pode até discutir se ele é realmente um político de esquerda ou um político de centro. A extrema-direita puxa tudo para o espectro e a gente fica sem espaço de negociação. Além disso, ficam inventando mentiras, dizendo que existe um plano comunista para dominar o Brasil e tal. No meio disso, a gente fica sem espaço para fazer políticas em que a gente possa realmente preparar um cenário de luta maior. Eu sinto falta disso, eu sinto falta de o Lula chamar o povo para ele, porque mais da metade da população o apoiou. É preciso iniciativas mais populares mesmo, de chamar o povo. Até para poder utilizar o posto, o Governo, como um fator de colocar discussões políticas em pauta na sociedade. Acho que isso falta, colocar essa luta como uma coisa mais popular, chamar o trabalhador para a conversa.

Pensa que a esquerda deixou de conversar com a classe trabalhadora?

Sim, a esquerda esqueceu de fazer isso - olha que contraditório, quem faz isso agora é a direita. A esquerda se tornou defensora da institucionalidade, foi muito ao centro e a gente está no momento dos extremos. Não estamos ocupando o lugar do extremo. A gente não popularizou os nossos grandes sonhos, então, todas as nossas pautas são pequenas. Parecem mesquinhas, entendeu? A gente está lutando por quê? Como você tem que dizer para o povo que a gente quer a Educação universal? A gente não fala mais nisso. A gente não fala mais que a gente quer Educação universal, que a gente quer acesso à Saúde universal, que a gente quer uma renda básica universal. A gente não fala mais essas coisas. A gente fala coisas de pautas mínimas, muito superficiais. Enquanto a direita fala de coisas malucas, que tem de acabar com o Estado e viver o anarcocapitalismo, porque o Elon Musk vai vir salvar o planeta. É uma coisa louca, mas para o cara que viveu muitos anos ouvindo esse papo moderado e que não mudou muito a vida dele, ele prefere ir com o papo maluco. É como se fossem os super-heróis contra os grandes vilões comunistas. É o bicho-papão comunista.

Acha que há como fazer arte, principalmente a sua arte, que é a música hip-hop, sem falar de política?

Eu falo de política bastante e fiz um disco diretamente político, o Roteiro Pra Aïnouz. Agora, eu estou criando um mundo imaginário, uma utopia de uma revolução e de um Brasil possível, da construção de um Brasil possível É diferente de algo mais panfletário. Eu não acredito na música política muito panfletária, que diga diretamente: “Vamos lá, lutar pelos nossos direitos”. Isso é muito Anos 90, já passou e não funciona mais, entendeu? Mas, ao mesmo tempo, o que você faz em música é sempre político, independente do que você esteja falando. O amor, por exemplo, falar disso pode ser muito político. Eu acho que, inclusive, a gente fala de amor de maneiras muito conservadoras hoje em dia. Eu estou tentando mudar isso. Na minha carreira, eu sempre falei de política. As pessoas, algumas pessoas, sempre notaram, e outras pessoas não pegaram diretamente, não perceberam, mas fez o mesmo efeito, fez o efeito que eu queria. Eu consegui o objetivo que eu queria quando eu estava falando indiretamente. Nos meus próximos passos de carreira quero falar de amor. Eu fiz uma música romântica agora, Tudo É Pra Sempre Agora, que é uma música que fala de amor, mas de uma maneira não-conservadora, de uma maneira que coloca possibilidades diferentes de relacionamento. O clipe que eu gravei tem esse lance, saca? Inclusive sobre os papéis de género. Eu estou interessado agora em fazer música que tenha um conteúdo político indireto, que eu acho que tem uma outra função.

O que mais o inspira a fazer música?

Eu tenho muitas coisas que me inspiram, eu gosto muito de pensar sobre o tempo que a gente vive, essa conversa toda que a gente está tendo, ela me leva a pensar várias coisas. Uma delas é isso que eu acabei de falar, que eu acho que a gente está num momento de um mundo totalmente outro que está se configurando em termos políticos, têm discussões importantíssimas em pauta e que estão sendo levadas para um lado tão bobo, liberal da coisa. Por exemplo, a discussão sobre o colonialismo mesmo, sobre o racismo, a imigração no mundo, sobre novas formas de amor, que é uma coisa que me tem interessado bastante. Tem muitas discussões de um mundo mais progressista e tal, e que ao mesmo tempo, no Brasil pelo menos, há um avanço conservador muito grande. Uma das influências é do neopentecostalismo, das igrejas na periferia, enquanto as religiões de matriz africana estão sendo mais perseguidas do que nunca. Tem muito espaço para a gente fazer música, fazer arte de uma forma contestadora, mas que proponha um bem viver, formas de vidas alternativas para agora, para ser feliz agora. A gente vive muito num lance  que ou você está alienado num mundo muito conservador ou parece que você vive num inferno, e que pode ser verdade por um ponto de vista, mas a gente tem de encontrar formas alternativas de curtir a vida e de fazer inveja a esse outro lado também. A gente também sabe viver e ser feliz na luta, e isso é importante para mostrar para as pessoas. E isso já foi feito no passado, como no movimento musical brasileiro nos Anos 60, em que você teve diversos artistas colocando novas formas de vida, na Tropicália, na MPB, com o Jorge Ben Jor e a galera do movimento Black Power. O que eles falavam é: “Galera, a gente tem também nossa forma de vida aqui e eu posso fazer inveja para vocês, porque a gente consegue também ser feliz e tirar uma onda, porque a gente tem estilo.”

Quais os artistas portugueses ou mesmo dos países de língualusófona que você gosta?

Eu estou um pouco desatualizado e quero, inclusive, utilizar essa viagem a Portugal para conhecer. Eu sou um cara que tem uma proximidade e gosto muito de uma nova geração que vem com Slow J, eu curti muito as coisas que ele fez nos primeiros trabalhos. Tem também a geração mais antiga como o Valete, que está alinhado politicamente comigo, é um clássico. Que eu gosto bastante dele. Nessa viagem quero estar por dentro do que está rolando. Agora acho que é um momento mais de chegar perto, assim. Eu quero conseguir, pelo menos em algum dia, fazer um rolê, colar em algum lugar, fazer esse tipo de coisa aí para me aproximar, mas eu preciso me atualizar mais na lusofonia, eu estou ouvindo muito pouca música americana no momento. Também porque eu estou muito concentrado no Brasil mesmo, é tanta coisa acontecendo que sobrou pouco tempo para eu sacar o que está rolando, mas eu estou muito interessado também no que está acontecendo em África, nos países lusófonos.

No futuro pensa em fazer algum trabalho com artistas de Portugal e de países africanos que falam português, por exemplo?

Penso muito, quero muito fazer isso. Quero muito conhecer pessoas com que eu me identifique e que estejam dispostas a trabalhar, tanto de Portugal, como dos países de língua lusófona pelo mundo.

CONCERTOS

10 de maio, Plano B, Porto

11 de maio, Musicbox, Lisboa

amanda.lima@globalmediagroup.pt

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