Um filme de verão com um aroma a negritude
Um filme de verão com um aroma a negritude

Extremamente agradável

'Sobretudo de Noite' é uma agradável surpresa vinda de Espanha. Trata-se da estreia do programador Victor Iriarte na realização e funciona como uma lição de representação de duas grandes atrizes, Anna Torrent e a Lola Duenas.
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Não têm sido exemplos felizes as nossas coproduções com Espanha neste modelo de participação minoritária. Fica-se com uma ideia de que há uma invisibilidade flagrante neste modelo. Por muito que teoricamente este esforço pareça ser de saudar, os filmes desaparecem do mapa no nosso mercado. Mesmo com França ou Brasil parece acontecer o mesmo. Pergunta-se: porque não acontece de novo um caso Belle Époque - A Bela Época, de Fernando Trueba (que deu o Óscar a Espanha em 1993) ou O Rei Pasmado, de Imanol Uribe, campeão de popularidade em 1991 e a resposta fica a pairar entre as circunstâncias atuais e a falta de pouco faro dos produtores portugueses.

Agora chega este Sobre Todo de Noche, de Victor Iriarte, com uma pequena participação da Ukbar Filmes, de Pandora da Cunha Telles, depois de uma também quase invisível sessão no Indielisboa. Trata-se de uma surpresa francamente agradável que revela um novo cineasta, alguém vindo da programação de cinema (o realizador é um dos programadores do Festival de San Sebastián) e que nesta história de mães mistura elementos, géneros e estilos. Salganhada? Nem pensar, todas essas sobreposições pressupõem um combinado de texturas cinematográficas. Um filme cinéfilo, pois então, destemido na sua colagem de referências.

Entre o melodrama familiar e o film noir, conta-se a determinação de uma mulher à procura de uma mulher que lhe terá ficado com o filho, roubado pelo franquismo. Pelo meio surgem várias histórias ocultas, algumas com o mistério de um thriller, outras pela possibilidade de um musical em andamento. Uma vaga itinerante que tem a capa de um road movie, algures entre Espanha e Portugal com um encontro doloroso de mães no sol do Douro.

O que é invulgar na câmara deste estreante é a sua capacidade de criar um “clima” de experiência - experiência cognitiva, experiência de matéria que vibra. Um jogo enigmático de colagens feito por alguém que viu muito cinema, mesmo que, por vezes, se estampe em soluções de arranjos narrativos, como se perdesse tempo e espaço em material que não interessa, que apenas atrapalha… E é precisamente no “momento” do Douro que o apaziguamento dramático do filme atinge uma maturidade serena. Iriarte não filma a beleza da região de forma turística, incorpora-a atmosfericamente na trama.

Claro, depois há o trabalho de duas imensas, imensíssimas atrizes: Lola Duenas e Anna Torrent, cada uma traz as nossas memórias de Almodóvar e Erice, respetivamente. Ainda há filmes de atrizes, felizmente. Ambas são perfeitas nesta gestão de uma interrogação sobre o lugar da mãe.
Nesta selva de estreias em cima umas das outras é mais do que provável que Sobretudo de Noite seja engolido no esquecimento. Que verão danado para o cinema de franjas… Este “filme de cinema” merecia muito mais carinho na sua promoção.

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