Eureka - O cinema liberta!
A bem dizer, nada do que se parece em Eureka é o que aparenta. A contradição faz parte do jogo. Um western que, afinal, não é western. Um conto de meditação sobre o lugar dos indígenas que acaba por ser um ensaio sobre os limites do tempo e espaço. Mas o argentino Lisandro Alonso talvez não queira fugir do mais importante: uma reflexão pesada sobre o peso do colonialismo em diversos quadros. Quadros esses que se tocam numa América com peso de fábula e com uma tolerância panorâmica subtil.
Em Cannes, onde apresentou o filme fora de competição, não esconde alguma frustração por essa realidade, num encontro para a imprensa. Não é o mesmo Lisandro de outros anos e que em Portugal, numa visita ao Leffest, de Paulo Branco, aparentava um comportamento bem mais excêntrico. Fala um castelhano pausado, quase terno e quer realmente sentir o que os jornalistas tiram deste puzzle metafísico. “A questão do filme estar dividido em três partes era algo que estava no argumento inicial mas, a dada altura, quis ser mais fluído e ver o que isso poderia dar. Começámos a rodar a última parte, a da selva, no México, e só depois fomos rodar em Almeria a parte do western. No fim, na montagem, é que comecei a organizar tudo. O processo teve tanto de fácil como de complicado. Na realidade, não gosto de controlar o filme, não gosto de antever o seu resultado final... Se parece organizado também quero dizer que está aberto a várias interpretações”, começa por dizer sobre a estrutura de uma história que não obedece aos compêndios do cinema narrativo. Há uma mulher indígena nos EUA que ouve o conselho do seu avô: “lembra-te: espaço, não o tempo. O tempo é uma invenção dos homens”. Esse é o ponto de partida que liga os tais três segmentos: uma visita ao velho Oeste americano, uma trama policial numa América fria do Dakota do Sul e uma passagem à selva da América Latina onde há quem queira dar o golpe... Tudo isso sempre servindo as regras do “slow cinema” vigente.
O lugar do nativo-americano
Acerca do momento inaugural do western, a ideia de Alonso era de criticar a forma como Hollywood representa a ideia do “índio”: “por alguma razão, depois, quando percebemos que aquilo está a dar na televisão, os índios verdadeiros nem estão a ligar. Aliás, o cinema western nunca ligou aos índios, não os representa. Não vi todos os westerns mas desconheço algum que ponha os nativos como têm de estar representados”. Ripostamos que no mesmo festival estão A Flor do Buriti, de João Salaviza e Renée Messora, e Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese, dois projetos que põem a cultura indígena como protagonista... “sim, talvez porque agora há quem queira ouvir outras histórias menos urbanas, mais ligadas à natureza”.
Misturar Viggo e Luísa Cruz
Além de Viggo Mortensen, Chiara Mastroianni e atores não-profissionais nativo-americanos, o elenco do filme tem uma presença portuguesa graças à co-produção com a Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho, Luísa Cruz: “cheguei até ela graças ao meu amigo português, o cineasta João Nicolau, que já a tinha dirigido, creio. Liguei-lhe para saber quem poderia ser aquela freira e ele recomendou-me a Luísa, que está fantástica”, conta o realizador antes de se queixar face à fama de “cineasta raro”: “a verdade é que está cada vez mais difícil arranjar financiamento para os meus filmes... A maior parte do dinheiro tem de vir da Europa. Felizmente tenho tido muito apoio fora da Argentina mas demora muito tempo. Este filme tem dinheiro de cinco países mas foi preciso esperar muito. Demoram muito a decidir financiar-me... Claro que na Argentina não há orçamento, sobretudo agora com isto da inflação! Só dá para sobreviver com coproduções. Cinema na Argentina não é a prioridade”. Ainda assim, o nome de Lisandro Alonso chega para que Viggo Mortensen não tenha coragem para dizer não a mais um convite: “ah, isso é porque o Viggo gostou de trabalhar comigo em Jauja e tem uma ligação forte com o meu país. Seja como for, nunca sei como o dirigir. O que se diz a um ator como Viggo Mortensen!? Não lhe vou pedir para fazer isto ou aquilo, limito-me a ficar quietinho e trato-o de forma igual. De vez em quando, ele lá me faz uma pergunta... Nós encontrámos a maneira certa para fazer este filme fazendo-o! Ainda assim, este filme foi muito mais fácil para ele do que Jauja - a parte dele é a do western e ele já tinha feito muitos westerns! Creio que estava numa zona de muito maior conforto. Ele é um tipo impecável e muito colaborativo, estando sempre interessado em extrair de mim o melhor. É bom tê-lo ao meu lado, sobretudo para chegar perto de produtores e agentes. Devo-lhe muitos favores, mas o problema é que estou a marimbar-me para o futebol e ele é fanático...”.
Numa temporada com um número anormal de estreias, é um pequeno pecado ignorar esta obra cujo laconismo é tão invulgar como exaltante e onde a perenidade de um plano-sequência contém uma verdade essencial a decifrar uma viagem para desafiar os nossos preconceitos com o sobrenatural de outras culturas. Seja transmutação de corpos ou outras veleidades espaço-temporais. Eureka é sobre todo esse conceito de América que não vemos nos filmes. Ou como o cinema pode ser (ainda) um refúgio para a nossa libertação enquanto espectadores.