Como se recorda da notícia da morte de Enver Hoxha? Sei que naquele momento, 1985, era uma criança muito pequena.Tenho duas memórias. A primeira foi quando eu estava na creche. Eu era muito nova, ainda não estava na escola primária. Mas a creche já era muito politizada na Albânia. E então lembro-me da professora da creche nos mandar, a todas as crianças, sentarmo-nos e com um rosto muito trágico disse-nos que algo terrível tinha acontecido ao nosso país. Que Enver Hoxha tinha morrido. Também me lembro que ela estava a tentar, de alguma forma, enquadrar a morte para nós percebermos. E essa foi, acho, a primeira vez na minha vida que me lembro de pensar sobre a morte. Nós éramos um país ateu, oficialmente não havia religião na Albânia, e ela estava a tentar dizer, “sim, ele morreu, mas o seu legado viverá. E são as crianças agora aquelas que precisam levar esse legado adiante”. Eu estava muito triste, mas também muito motivada por esse discurso que tinha acabado de ouvir na creche. E a outra memória é quando fui para casa e contei tudo à minha avó, de maneira muito triste, porque eu tinha interiorizado que era um dia muito sombrio, e ela continuou a dizer, “fiz uma torta realmente maravilhosa para o almoço, queres comer um pouco de torta?” Eu não estava a querer comer, porque um sinal de tristeza é não querer comer, mas a minha avó insistia. Não pareceu afetada da mesma maneira que eu fui pela notícia da morte do nosso velho líder..Um dos legados de 40 anos de Hoxha no poder foi o isolamento do país. Porque inicialmente a Albânia era contra o Ocidente capitalista, depois contra a União Soviética revisionista. E finalmente até mesmo contra a China comunista. Como era a vida na Albânia? As pessoas estavam cientes desse isolamento?Sim, sim, eu estava ciente. E os anos em que eu estava a crescer foram exatamente aqueles anos em que o país estava isolado de tudo e todos. E, da perspetiva de uma criança, isso era como pertencer a um super-herói, muito pequeno, mas que todos temem. Porque a retórica do governo era que “somos um país muito pequeno, mas mesmo aqueles grandes impérios, a União Soviética, os Estados Unidos, a China, todos países muito grandes, não nos conseguiram derrotar ou não nos conseguiram transformar numa cópia deles”. E então éramos o único país no mundo que se mantinha fiel aos ideais comunistas. Eu estava muito ciente do isolamento e também do custo desse isolamento. Mas havia uma narrativa que justificava o isolamento dizendo que valia a pena porque estávamos a defender algo muito valioso que era a nossa liberdade. E que, na verdade, nós também éramos um modelo para todos os outros pequenos países que tinham que defender a sua liberdade contra os impérios e podiam olhar para o exemplo albanês para se fortalecerem. Tínhamos um slogan que era “Albânia, o farol das lutas anti-imperialistas ao redor do mundo”. E era muito fortalecedor viver nesse farol..Como era a vida quotidiana na Albânia? Havia principalmente falta de liberdade ou também se sentia a pobreza?Eu era criança e as crianças não têm opiniões políticas. Por isso, nunca pensei na falta de liberdade. Sempre pensei no facto de que não tinha muita coisa. Havia muita escassez. Não tinha acesso a todas as coisas que eu sabia que crianças noutros países tinham. Tínhamos que fazer fila para tudo. As lojas estavam muito vazias. Havia racionamento para tudo. Então tínhamos que pagar tudo com esse pequeno cartão que se recebia e dava acesso apenas uma vez por mês a uma certa quantidade de carne e apenas a uma quantidade muito, muito pequena de açúcar e a uma pequena quantidade de arroz. A comida era racionada. Lembro-me que às vezes as pessoas vinham de viagens ao exterior, e traziam coisas como chicletes, por exemplo. E é por isso que colecionávamos embalagens de chicletes, porque isso era entre as crianças uma maneira de ter essas coisas que as pessoas no Ocidente tinham. Nós não tínhamos pastilhas, não tínhamos Coca-Cola, não tínhamos nenhum tipo de bens de consumo. Então lembro-me de sermos muito pobres, mas também de sermos uma comunidade muito, muito unida. Não havia muita coisa, mas as pessoas compartilhavam muito do que tinham. Se havia uma festa de aniversário, por exemplo, e não tínhamos algo, ia-se até ao vizinho e podíamos trocar as rações do mês. Ou eles davam algo ou, então, as pessoas reuniam-se na vizinhança para fazer festas ou casamentos. Ou se houvesse um funeral, todos contribuíam com algo. Então havia muita solidariedade na pobreza..Mencionou que a Albânia era um país ateu, mas tradicionalmente o povo era muçulmano com minorias católicas e ortodoxas. Como se vivia a religião na Albânia?Passou por diferentes períodos. No início do regime comunista, a seguir à Segunda Guerra Mundial, não era encorajada, mas não foi suprimida. Mas houve uma campanha massiva contra a religião no final dos anos 1960. E então todas as igrejas e todas as mesquitas foram destruídas. Começou como uma iniciativa da juventude comunista. Então, quando eu estava a crescer, a religião simplesmente não existia na Albânia. Nunca pensava em religião. Só me lembro de uma vez na televisão italiana ter visto o Papa. E fiquei muito impressionada com a imagem desse homem com essas vestes brancas e o meu pai não sabia como explicar-me o que era. E acabou com a conversa porque era muito complicado explicar o que era um Papa. Eu não tinha ideia do que era um Papa, nem o que era Jesus, nem o que era Maomé. Cresci sem religião..É muito interessante a sua história familiar, com o seu famoso bisavô, o antigo primeiro-ministro odiado pelo regime comunista. Isso significa que sua família, de certa forma, pertencia à classe alta, era mais culta, falava línguas estrangeiras. Mas, ao mesmo tempo, sofria por causa disso. Sabia pertencer a um tipo diferente de família, numa país que pretendia ser a pátria dos trabalhadores?Um pouco. Especialmente, por exemplo, porque eu estranhava os meus pais nunca terem uma foto de Enver Hoxha em casa. E eu era muito comprometida quando criança, muito moldada pela ideologia comunista. Mas notava que a minha família sempre teve relutância em abraçar essa fé comunista da mesma forma que eu a abracei. Sempre que eu perguntava por que não tínhamos uma foto de Enver Hoxha na nossa sala de estar, como as outras famílias, os meus pais davam desculpas. Diziam, “oh, precisamos arranjar uma moldura bonita”. Também sentia que eles tinham conversas que eram um pouco misteriosas, sobre universidades, mas não sabia que era um código. Não tinha ideia de que quando falavam sobre as universidades onde os meus familiares se formaram, o que queriam dizer era, na verdade, prisões onde tinham estado. Só depois da queda do comunismo foi posto a descoberto que minha família era uma família anteriormente privilegiada. Então eu só achava um pouco intrigante. Por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial, havia esse grande mito da resistência antifascista. E todos celebravam os familiares que tinham participado da resistência. Nós não tivemos uma única pessoa que contribuiu para a resistência antifascista. Isso era uma grande deceção para mim..Depois da revolução de dezembro de 1990, inicialmente foi a sua mãe que começou uma carreira política e depois o seu pai. Eles viram essa mudança de regime como uma oportunidade real de construir uma nova Albânia?Sim, definitivamente. Eram muito idealistas e estavam muito envolvidos na mudança. Achavam que finalmente poderiam contribuir para moldar o país. Todos podiam votar livremente. E essa ideia de que havia pluralismo político e abertura ao mundo para eles era vista como uma oportunidade de ajudar o país a desenvolver-se. Então, ambos estavam muito comprometidos. Mas estavam comprometidos de maneiras diferentes, porque o meu pai não era um capitalista de mercado livre. E teve dificuldades em aceitar as reformas que chegaram à Albânia nos anos 90 com essa chamada terapia de choque, que era o programa de neoliberalização de todas as empresas estatais, o que significava que se tinha que cortar muitas pessoas e torná-las redundantes e desempregadas. E o meu pai tornou-se o diretor do maior porto do país e foi responsável por demitir muita gente. Sofreu muito e ficou deprimido por causa disso. Então, acolheu a transição, mas logo percebeu que isso tinha um custo muito alto, e que ele mesmo não estava preparado para assumir de alguma forma. A minha mãe era diferente, porque ela era muito de direita e sempre acreditou nessa ideologia. E ela também veio de uma família rica que tinha sido desapropriada durante o comunismo. Então, viu tudo como uma maneira de conseguir a restituição das propriedades da sua família e como uma nova era para possibilidades de enriquecimento..Livre Lea YpiCasa das Letras336 páginas19,90 euros.No meio dos anos 1990, os da tal terapia de choque, houve o escândalo dos esquemas Ponzi na Albânia, que afetou grande número de pessoas. Como viveu essa época?Eu estava já no meu último ano do liceu naquela época. E isso começou por ser um colapso financeiro, mas rapidamente se transformou num colapso político porque as pessoas responsabilizaram o governo por não as ter preparado para cuidar das economias e alertado que esses esquemas piramidais eram muito arriscados. E transformou-se num conflito total. As pessoas atacaram os depósitos de armas e todos tinham armas e estavam a disparar contra os outros. Rapidamente se deteriorou num cenário de quase guerra. E houve muitas vagas de migrantes albaneses. Nós morávamos em Durres, uma cidade portuária. Eu tinha 18 anos, estava prestes a ir para a universidade, e esse foi um momento realmente trágico porque parecia outra revolução, mas muito diferente da de 1990, que foi de esperança. Agora era apenas uma catástrofe, apenas um colapso. E também não era claro o que poderia vir, porque o comunismo tinha entrado em colapso, e o capitalismo também. Foi um momento de grande crise existencial e política que realmente moldou a maneira como penso sobre o mundo hoje..Em 2009, a Albânia tornou-se membros da NATO. É algo que para os albaneses fazia sentido?Sim, queriam fazer parte dessa aliança há muito tempo porque sentiam que foram deixados de lado pela História porque estiveram primeiro sob o Império Otomano e depois dominados pelos fascistas e os comunistas. A integração na União Europeia e a parceria com a NATO eram desejadas desde 1990..A NATO foi conseguida, falta a União Europeia. Continua parte do projeto nacional da Albânia?Sim, absolutamente. E é, na verdade, o tipo de projeto que impulsiona todas as reformas, porque tudo o que acontece no país acontece à luz dessa ideia de que precisamos de fazer o nosso trabalho de casa para a integração europeia. De certa forma, também tem, acho, um efeito paralisante na democracia albanesa, porque significa que as pessoas não se importam com as instituições como tal. Só se importam instrumentalmente porque querem fazer parte da UE. Há a preocupação de que façam as mudanças porque lhes é dito, mas realmente não se sabe o quão seriamente acreditam no que lhes é pedido para fazer ou se estão apenas a fazer porque é isso que precisam para se tornar parte da UE..Da sua experiência pessoal vivendo na Albânia durante os tempos comunistas e agora visitando o seu país natal, realmente vê grandes mudanças na vida das pessoas? Lembro-me da Albânia descrita sempre como o país mais pobre da Europa. Agora, mais de 30 anos após a queda do comunismo, há realmente um a melhoria na qualidade de vida das pessoas?Bem, quero dizer, houve mais desenvolvimento capitalista, então houve mais investimento e houve grande desenvolvimento de infraestrutura. Houve recentemente um grande boom no turismo, então houve mais desenvolvimento desse tipo, mas por outro lado a qualidade da educação não melhorou necessariamente e há outros critérios em que o país está realmente a ficar para trás. A desigualdade aumentou, a fuga de cérebros ainda é um problema enorme para o país porque muitas pessoas vão embora. Não apenas a fuga de cérebros, mas na verdade a emigração. Muitas pessoas deixam o país e então o despovoamento cresce, também porque as pessoas se mudam do campo para cidade. E há cidades que são cidades fantasmas, que são abandonadas. É um desenvolvimento muito contraditório como se espera em muitos países que têm esse choque rápido muito grande de ter que se integrar ao mercado global e também vivenciar todos os choques do mercado global. É assim em qualquer outro país, exceto que começámos de uma posição de instituições menos robustas e resilientes e então nesse sentido, sim, há desenvolvimento nas últimas décadas, mas com todas as discussões complexas que existem em torno desse tipo de desenvolvimento.Ainda há nostálgicos de Hoxha?Eu não diria que há nostálgicos de Hoxha. Certamente há pessoas que farão comparações com o passado e então dirão que havia mais sentimento de comunidade, que as pessoas se importavam mais umas com as outras, que havia mais ordem, mais crença em valores de alguma forma, embora esses fossem os valores errados. Mas eu não creio que a Albânia seja um país com muita nostalgia pelo comunismo e acho que às vezes as pessoas são nostálgicas apenas porque são nostálgicas da sua juventude, não necessariamente nostálgicas do antigo regime. Apenas porque foi uma fase das suas vidas que já não existe e elas sentem-no. Quando somos mais velhos, estamos mais perto da morte e somos nostálgicos de quando éramos mais jovens. É mais isso.