Em Viver Depressa revisita o acidente de moto em que o seu marido Claude morreu em 1999. Em 2001 já escreveu sobre o assunto o livro À présent. Voltar a um episódio tão doloroso foi uma forma de completar o luto? Sentiu que estava na hora? Quando escrevi À présent foi dois anos depois do acidente e foi verdadeiramente um livro diferente. Era um livro do espanto, da explosão, do caos. Mas nesse momento, quando escrevi aquele livro, sabia que O livro, o verdadeiro livro, ainda não o tinha escrito. Sabia que ainda não fora capaz de o fazer. Mas sabia que um dia o ia escrever. Não sabia era que ia demorar 20 anos, mas demorei 20 anos porque este livro me assustava, porque é um livro que obrigou a uma investigação - ao mesmo tempo íntima mas também coletiva, política, sociológica. Este livro assustava-me porque ia fazer emergir muitas verdades, eventualmente iria fazer emergir responsabilidades. Eu tinha de pôr tudo em ordem, tinha de estar à altura. À altura do homem, à altura da história de amor, do acontecimento. E tinha medo de falhar este livro. Por isso o fui adiando, ano após ano. Nesse tempo fui escrevendo outros livros. Mas finalmente este livro tinha de o escrever porque aquele foi um acidente que não teve causas aparentes, que não faz sentido. E para nós humanos é insuportável ser confrontados com acontecimentos que não têm sentido. Este livro tenta desesperadamente dar sentido ao que não o tem, tenta tornar suportável o insuportável. E tenta, talvez uma última vez, contrariar o destino. Mas não é, de todo, um livro que me tenha mergulhado no acontecimento. Porque esse está integrado em mim. Escrever não volta a mergulhar na realidade mas permite criar um novo olhar sobre a realidade..Fez verdadeiramente uma investigação quase jornalística que levou anos... Não levou estes anos todos. Pelo meio escrevi uma dezena de livros, vivi, fiz muita coisa, mas - pelo menos nos últimos dez anos - tinha na cabeça a necessidade da investigação. Entre outras coisas em torno da mota, que é um ponto central. Esta mota proibida no Japão, porque considerada demasiado perigosa, e reservada à exportação para a Europa, sobretudo o Sul da Europa. Por isso somos muitos os afetados, é uma mota com a qual houve muitos acidentes, e acidentes muito graves e mortíferos. Isso demorou muito tempo, porque na altura do acidente, em 1999, não havia internet, ou muito pouco. E por isso há muitos poucos vestígios online. Foi preciso investigar, demorou, foi difícil. E havia várias outras averiguações, que se sucederam. O romance autobiográfico funciona com um efeito dominó - cada capítulo chama o seguinte, que chama o próximo,....Conduz-nos neste livro através de uma sequência de "Ses". O seu objetivo foi questionar o destino? Sim, porque, como já disse, no caso deste acidente não houve uma causa aparente, mas sobretudo, nos dias e semanas que o antecederam houve estranhas coincidências. Houve azares preocupantes, houve sinais, várias coisas que não tinha visto. Porque quando não acontece nada de grave, não questionamos o destino. Só o questionamos quando acontece algo excecional, sobretudo algo de excecionalmente trágico. A palavra destino é o mektoub do árabe - significa "estava escrito". E eu tinha de ver de perto se estava escrito ou se tinha sido azar. Azar também vem do árabe - é um jogo com dados - e é o contrário do destino. E há uma terceira noção extremamente importante, que é o determinismo. Eu precisava de olhar atentamente para ver do que é que somos o resultado, o que é que as nossas vidas significam. O determinismo social, geográfico, histórico, político, etc. Estas três noções - o destino, o azar e o determinismo - fizeram-me escrever este romance, porque precisava de questionar tudo isso..E chegados ao fim do livro, as perguntas mantêm-se... Sim, sim. As questões mantêm-se. O livro é uma confissão de impotência. A literatura é impotente. Impotente a mudar a realidade, sabemo-lo. Este livro é uma tentativa de esgotar as hipóteses. É tentar algo sabendo que o resultado não irá mudar. Mas ao mesmo tempo permite mudar o olhar sobre a realidade, permite ter uma relação com o mundo diferente. E por isso foi preciso esperar 20 anos para escrever este livro, porque tinha de conseguir enfrentar todas as verdades que iam emergir..É uma história muito pessoal. Sente que os leitores se reveem no que a Brigitte escreveu, o que lhe dizem quando a abordam? Sejam jovens, estudantes, pessoas de meios diferentes, pessoas mais velhas, homens, mulheres, é muito surpreendente ver como muita gente me diz que também passa muito tempo a refazer a história com "ses". A questionar o passado. Este é um livro que coloca a questão das escolhas que fazemos, de uma ponta à outra da nossa vida. Sabendo que cada uma dessas escolhas tem uma consequência. Seja uma escolha pequena - se vamos de férias ou não, para que região, em que escola pomos o nosso filho, se nos mudamos para determinado bairro ou não, se vamos de carro ou de comboio - ou escolhas mais importantes - se vamos viver com a pessoa que amamos, se temos filhos ou não. São pequenas e grandes escolhas que fazem a nossa vida mudar de rumo para um lado ou para o outro..Viver Depressa valeu-lhe o Goncourt 2022, este tipo de prémio ainda é importante para a visibilidade de um escritor hoje em dia? Sobretudo hoje em dia. Porque a literatura tem cada vez mais dificuldade em se impor. É o que dizem todos os editores e os livreiros e penso que não é mentira. O que é interessante com um prémio como este é que vai trazer um número considerável de leitores. E vai também dar visibilidade aos livros anteriores do vencedor. Isso é muito animador. Ao estar na lista do Goncourt, mesmo antes de receber o prémio, temos encontros com muitos estudantes. E quando vencemos também temos encontros com estudantes estrangeiros. E é verdade que vencer o prémio dá uma enorme visibilidade, permite uma presença forte nos media. Dá a oportunidade de falar do nosso livro, mas também de literatura. E isso é importante..Este ano a decisão do júri não foi fácil - soube-se que foram precisas 14 rondas de votações para determinar o vencedor entre o seu Viver Depressa e O Mago do Kremlin, de Giuliano da Empoli. São dois livros muito diferentes, este impasse e esta escolha surpreenderam-na? Na verdade, as decisões são sempre assim. É normal, é lógico, é democrático e é feliz que num júri haja gostos diferentes, escolhas diferentes, entusiasmos diferentes. Porque há tipos diferentes de literatura. O que foi especial foi um membro do júri ter vindo dizer de forma oficial e mediática quais os segredos das deliberações. Não se faz, não é suposto sabermos. Depois, os dois livros são muito diferentes. Um é muito mais pessoal. Mesmo se não o vejo como sendo íntimo, como o descreveram. O íntimo só me interessa se estiver ligado ao coletivo. Senão não tem sentido. A minha vida não é mais interessante do que qualquer outra. O que me interessa na escrita de Viver Depressa, nessa grande investigação, é que ali encontramos o Japão, Tadao Baba, a Honda, o costureiro Paco Rabanne, o escritor Stephen King, a rainha Astrid, o humorista Élie Kakou, o naturalista Émile Guimet, muitos músicos. Para mim, é um livro que fala da época, do liberalismo, é um livro político. Portanto a palavra "íntimo" para mim é um pretexto para falar do mundo e dos outros. O outro livro, de Giuliano da Empoli, é outro género de literatura. É um livro ligado à atualidade. E, claro, é um livro que interessa aos leitores num momento muito contemporâneo. Portanto compreende-se que estes dois livros completamente diferentes tenham dividido o júri. E acho isso extremamente são..Annie Ernaux ganhou o Nobel no ano passado, depois de Patrick Modiano ter vencido em 2014 e J. M. G. Le Clézio em 2008. A literatura francesa está de boa saúde? Diria que sim, na medida em que, na minha opinião, nos últimos anos a literatura francesa reencontrou uma grande vitalidade. E conseguiu abraçar o mundo - ou seja, conseguiu voltar a estar ligada a questões da sociedade, a questões mais universais. Com uma diversidade de escritores franceses extremamente interessante. Há muitos escritores, muito diferentes uns dos outros, que propõem tipos de literatura muito diferentes. Portanto, sim é uma boa época para a literatura francesa, que está muito fervilhante..Para terminar, um autor português de que goste? Há uns anos li muito e gostei muito da Lídia Jorge. Lembro-me do seu maravilhoso romance Notícia da Cidade Silvestre [La Forêt dans le Fleuve, na edição em francês] que é um romance imenso, que acho extraordinário e que me alimentou muito. Claro, José Saramago é um escritor imenso. António Lobo Antunes é extraordinário, com a ligação ao colonialismo. É algo que me interessa muito a mim, enquanto francesa nascida na Argélia, um país colonizado pela França. Li-o muito também. E Fernando Pessoa, que é quase o pai de todos nós. Sobretudo o seu Livro do Desassossego. Através de Fernando Pessoa a palavra "desassossego" ["intranquilité"] entrou na língua francesa. É uma palavra que não usávamos, não dizíamos "desassossego" antes de termos lido o livro de Pessoa. Não digo que toda a população francesa use esta palavras, mas grande parte das pessoas que leem, que se interessam pela cultura, falam agora de desassossego, de estar desassossegado. Veja o peso da literatura! E o peso da literatura portuguesa..Depois do Goncourt já está a pensar no próximo projeto? Para já, não. Porque estou muito ocupada. Fisicamente, mas também o meu cérebro está muito ocupado com as deslocações, as viagens, as intervenções, as entrevistas, os encontros com os leitores. Portanto, não tive qualquer possibilidade de pensar num novo livro. E, por exemplo, tenho muita pena de não poder ir a Lisboa, como foi proposto pela minha editora portuguesa, porque coincidia com outra deslocação. Adorava voltar a Lisboa, mas com certeza haverá outras ocasiões..Viver Depressa Brigitte Giraud Planeta Editora 208 páginas