Espíritos e vodu num colégio de raparigas
É cinema com cheiro a velas queimadas e ambiente enigmático. "A Criança Zombie", a mais recente proposta do realizador de Saint Laurent, põe o dedo na ferida da França colonialista.
Zombies, vodu, colonialismo. Com estes três conceitos, o francês Bertrand Bonello forjou o seu novo filme à procura de uma ligação - em termos formais, não óbvia - entre a linguagem do género de terror e uma dimensão política. Recentemente, convém lembrar, essa mesma relação foi explorada em A Hora da Saída, de Sébastien Marnier, sobre um grupo de jovens com um plano sombrio, hostilizados pela questão ecológica. Mas se no caso de Marnier o objetivo era abordar a febre da atualidade "ao estilo de Carpenter", a narrativa de Bonello, escrita pelo próprio, com um pé em eventos reais e outro na ficção, vai mais por caminhos do passado cruzando-os com os do presente.
Os primeiros momentos deste A Criança Zombie passam-se no Haiti, em 1962. Reza a lenda (aqui tomada como história verídica estabelecida) que Clairvius Narcisse, vítima de zombificação, foi subtraído ao mundo dos mortos para trabalhar como escravo nas plantações de cana-de-açúcar. O caso desse homem, cujo percurso de reconversão em humano se traduziu numa segunda vida, será a página do colonialismo com que Bonello cruza, alternadamente, um cenário narrativo contemporâneo.
A saber, num conceituado colégio com vínculos ao período napoleónico (leia-se, imperialismo francês), onde as alunas só entram por via de uma Legião de Honra atribuída ao pai ou à mãe, uma jovem de origem haitiana, Mélissa, nova aluna, está em processo de integração e começa por ter que provar ao seu novo grupo de amigas, através de uma confidência, que é digna de fazer parte dele. Para isso, conta-lhes um segredo de família, relacionado com o tal Clairvius Narcisse, expondo os fantasmas do passado que moram nela e provocando alguma perturbação entre as colegas, apesar do óbvio fascínio juvenil por matérias do oculto.
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Essa jovem negra, que se mudou para Paris depois da morte dos pais no terramoto de 2010 no Haiti, torna-se então ela própria alvo da curiosidade alheia, sobretudo para Fanny, a melancólica francesa de pele de porcelana que a apresentou ao grupo e que passa os dias a escrever mensagens românticas no telemóvel dirigidas a um rapaz que apenas vemos na projeção da sua memória. Ao contrário do desassossego das restantes raparigas do grupo, ela começa a sentir-se impelida a entrar no território perigoso do vodu, através da tia de Mélissa, uma "mambo" (suma-sacerdotisa no vodu haitiano), e acaba por se aventurar mais longe do que é suposto...
Na linha delicada de uma aula de história - inclusive ilustrada pela primeira cena no colégio -, A Criança Zombie é um objeto suficientemente atrevido para transformar a "lição" à volta do capítulo do colonialismo francês num imersivo e moderno ensaio do género do terror. É também verdade que Bonello tem sentido de estilo (isso sente-se, por exemplo, no uso certeiro da banda sonora) e sabe criar uma boa sensação de estranheza no cruzamento dos dois blocos narrativos. O problema é que, ao longo desse processo, a frescura da abordagem dá lugar ao esquematismo, acabando o filme por perder a força que inicialmente prometia.
Mas nem tudo está perdido. Não se tolde com esta ineficácia de conclusão o interesse do percurso a que somos submetidos. O realizador de Apollonide - Memórias de um Bordel (2011) continua a ser capaz de fazer sentir a pulsação nas imagens que cria, e isso é motivo que baste para aceitar o convite deste A Criança Zombie.
Classificação: ** Com interesse