Em nome do giallo
Depois da antestreia no MOTELX, chega às salas o novo de Dario Argento. Óculos Escuros pode não ser uma inspirada obra tardia, mas contém os códigos de um género que só o seu autor domina com um estilo artesanal.
É preciso recuar até 1971, ao segundo filme de Dario Argento, O Gato das Sete Vidas, para se ver um par de personagens principais composto por um homem cego e uma menina (um jornalista reformado e a sua sobrinha). A imagem desse par equivale, em Óculos Escuros, a uma jovem mulher que, depois de ficar cega, acaba por ganhar a companhia de um menino chinês. Mas há ainda um terceiro elemento neste arranjo, uma cadela-guia, que por sua vez remete para o cão-guia do pianista cego de Suspiria (1977), que protagonizava uma das cenas mais célebres e tenebrosas da obra de Argento, numa grande praça deserta à noite, assombrada pelas notas musicais dos Goblin - o seu desfecho sangrento vem à memória num dado momento do novo filme...
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Óculos Escuros é indissociável destes ingredientes homólogos do passado de um género, o giallo, que encontrou o seu esplendor nas mãos do mestre italiano. Apetece mesmo dizer que não se pode apreciar aqui as notas acentuadas, por vezes rudes, de tal expressão de suspense e terror sem identificar uma espécie de último suspiro: o giallo está morto, mas Argento, octogenário, quis provar que ainda sabe jogar com os seus códigos, ignorando os truques mais elaborados que saciam o público contemporâneo.
É por isso que, uma década passada sobre o seu último filme (Dracula 3D, medíocre adaptação do clássico de Bram Stoker), Óculos Escuros surge como o derradeiro exemplar de uma abordagem artesanal do giallo, independentemente de ser ou não o título de fecho de uma obra.
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O início do filme é particularmente estranho e sugestivo, com um eclipse em Roma que faz a protagonista, Diana (Ilenia Pastorelli), parar o carro num subúrbio e juntar-se às pessoas que observam o fenómeno de óculos de sol. Os seus, que ali ainda servem apenas para proteger a vista, acabarão por se tornar um acessório indispensável quando mais tarde fica cega, na sequência de um violento acidente provocado pela perseguição de uma carrinha branca.
Acontece que, como call girl, ela estava destinada a ser a próxima vítima de um serial killer que tem andado na área a cortar gargantas a mulheres profissionais do sexo. E depois de ter escapado uma vez, mesmo na sua nova condição de invisual, terá de se manter atenta aos sinais de perigo, contando com o auxílio de uma cadela-guia, de um menino chinês órfão (cujos pais morreram no referido acidente), e também, quando a tensão aumenta, da assistente social que lhe deu as lições básicas de orientação (personagem interpretada com modéstia pela filha do realizador, a habitué Asia Argento).
Sem grandes manobras ou sentido de sofisticação para além da montra de elementos que constituem a velha glória do giallo, Óculos Escuros brilha enquanto humilde documento de um legado. Numa das melhores cenas - um ataque de cobras d'água num pântano - Argento consegue mesmo fazer-nos sentir na pele o arrepio de um pesadelo, com a banda sonora de Arnaud Rebotini a responder às demandas de uma sonoridade característica.
Não é Morricone, nem os Goblin, mas não deixa de pôr o sangue a correr... ou a jorrar.
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