Na paisagem quase desértica da literatura portuguesa sobre cinema de terror, surge Olhar o Medo. Um livro sem preconceitos, sem teorias absolutas sobre o género e com genuína vontade de dar aos seus leitores as noções básicas de um tipo de cinema que muitas vezes se confunde com um território exclusivo para fãs. A abordagem anda mais ou menos neste registo: e se, afinal, O Silêncio dos Inocentes for terror? É isso que defendem os autores António Araújo e José Carlos Maltez, inserindo o filme oscarizado de Jonathan Demme no capítulo com o tema dos assassinos em série. "Um filme de terror não poderia chegar aos Óscares, por isso foi logo classificado como thriller psicológico", diz, em conversa com o DN, António Araújo. Ao que José Carlos Maltez acrescenta: "Quando vi O Silêncio dos Inocentes, logo na altura em que saiu, não dormi bem nessa noite... Em caso de dúvida, é a este argumento que me agarro"..Naturalmente, o filme que eternizou a dupla Jodie Foster e Anthony Hopkins não domina as atenções de Olhar o Medo - é apenas um dos clássicos tratados, entre dezenas de outros -, mas será um bom exemplo de como o livro não encerra o terror nos lugares-comuns que definiram o género aos olhos do grande público. E essa postura subjetiva está espelhada no subtítulo Visões Sobre o Cinema de Terror; são, de facto, as perspetivas individuais dos autores que se impõem, sempre com a devida contextualização dos filmes na história do cinema e na obra dos respetivos realizadores. Porque o que se pretende, acima de tudo, é criar uma porta de entrada para os curiosos, além de um compêndio para fãs, que podem aqui complementar o seu conhecimento dos títulos..Mantendo a linha da subjetividade, cada um tem a sua relação com o terror. Para António Araújo, este viabiliza uma experiência protegida: "O terror sempre me assustou, desde muito novo. Mas, ao mesmo tempo, sempre tive um fascínio, uma vontade de espreitar aquilo que me assustava. No fundo, foi a minha maneira de confrontar medos e ansiedades num ambiente seguro. Essa é, para mim, a definição do cinema de terror: o meio que nos permite aceder a emoções fortes e enfrentar certos medos que não quereríamos enfrentar na vida real. Numa sala de cinema estamos seguros.".A ideia é partilhada por José Carlos Maltez, que identifica o terror como uma "situação que não gostaria de viver". De resto, "também comecei muito jovem a gostar de cinema de terror, graças a uma fase em que a RTP passava bastante cinema. Via aqueles filmes da Hammer [produtora britânica], com os Dráculas, os Frankensteins... que era um terror muito aristocrático, com muito romantismo, etc. Foi, aliás, a paixão por esses filmes que me levou a criar o blogue [A Janela Encantada], como forma de analisá-los e dá-los a conhecer. E hoje em dia aquilo que me atrai no terror talvez seja o facto de ser um cinema correspondente ao que era, antigamente, o papel dos contos de fada, espécie de contos de advertência que nalguns casos preservam um espírito onírico, o lado fantasista. Se bem que o terror agora é tudo e mais alguma coisa..."..Para os autores de Olhar o Medo, tudo começou nos seus projetos pessoais: António tem um podcast chamado Segundo Take e José mantém um blogue, A Janela Encantada. Conheceram-se quando os seus textos se cruzaram na revista online Take Cinema Magazine, e perceberam aí que a paixão de ambos pelo mesmo género de filmes podia ganhar outro formato. "Tínhamos falado desta hipótese várias vezes, embora nos faltasse a crença de ter pernas para andar", diz José, que não esconde o prazer de folhear um livro: "Nós somos pessoas ainda um bocadinho da velha guarda, achamos que o que está online é tudo muito efémero. E mesmo em termos de livros, eu não consigo comprar e-books, porque gosto de ter o objeto físico. É algo mais real. E penso que também foi isso que nos motivou, na intenção de chegar aos outros através do objeto físico.".O resultado é um conjunto de textos sobre filmes, organizados por capítulos temáticos (Monstros, Vampirismo, Erros da Ciência, etc.), que contempla ainda curiosidades históricas no âmbito do terror e outras questões discursivas. Os títulos escolhidos vão de 1920 a 2020, e no final de cada capítulo há uma lista de sugestões, não abordadas pela escrita, que funciona como gesto de partilha cinéfila. Para António, essas listas vêm do espírito dos referidos projetos pessoais: "Não fazemos podcasts porque nos traz dinheiro ou fama: é mesmo a carolice de falar sobre cinema e de partilhar... Se houvesse podcasts e IMDb quando eu era adolescente, a minha vida teria sido muito mais rica. Na altura, os meios eram poucos para se saber mais sobre cinema.".Hoje em dia, além dos podcasts e do site IMDb, há ainda um festival lisboeta que serve de plataforma para os amantes do terror, e não só. "Devemos dizer que somos clientes assíduos do MOTELX - não é por acaso que o prefácio foi escrito pelo João Monteiro, um dos diretores do festival, e o livro foi apresentado na edição deste ano", lembra José Carlos Maltez. "O MOTELX é uma forma de perceber a evolução que se tem dado no terror. Já não é só assombrações e vampiros, há uma reescrita do género todos os anos.".Para terminar a conversa ao sabor da época, pedimos sugestões de Halloween... sem ser o próprio livro. António não deixou de fazer menção ao clássico homónimo de John Carpenter, mas "outro que, não sendo extraordinário, encaixa perfeitamente na tradição da época é uma das sequelas, o Halloween III [de Tommy Lee Wallace], que foge ao molde slasher do assassino, o Michael Myers, e incorpora na sua narrativa a própria mitologia da quadra". José, por sua vez, voltou-se para as bruxas: "Sugiro o Suspiria, do Dario Argento, que acho que é um filme que ainda hoje assusta, e um título coreano, História de Duas Irmãs [de Kim Jee-woon], com umas assombrações bastante diferentes". Voilà!.dnot@dn.pt