Dois dias depois de se saber que Elton John foi eleito pela revista Time o “Ícone do Ano”, eis que aterra no catálogo do Disney+ um documentário a confirmar o espírito do louvor. Com o subtítulo Never Too Late, este é mais um filme a juntar-se à lista de retratos musicais chegados à plataforma no ano corrente (Bruce Springsteen, Bon Jovi, The Beach Boys, John Williams, The Beatles...) e uma espécie de história de bastidores de outro filme-concerto disponível também no Disney+, Elton John: A Despedida ao Vivo em LA, que regista a experiência da derradeira passagem pelo palco do Dodger Stadium onde tudo começou em 1975, com uma vasta multidão aos saltos a testemunhar o efeito incandescente de uma jovem rock star vestida com um uniforme dos Dodgers... de lantejoulas. Imagem bem diferente, embora não menos especial, da do septuagenário sentado ao piano, já sem os bichos-carpinteiros de outrora, a combinar a indumentária colorida e hastes de óculos brilhantes com uma voz mais apaziguada e de acordo com a gravitas do tempo que passou..Em termos de estrutura, Elton John: Never Too Late apresenta-se então numa contagem decrescente para o dia do tal concerto de despedida das tournées, que aconteceu em novembro de 2022: é um acesso privilegiado ao artista, assim como à narrativa documentada com arquivos inéditos dos loucos Anos 70 que o estabeleceram no panorama musical. Um acesso privilegiado, dizíamos, mas ainda assim pouco expansivo, ou não fosse o documentário corealizado por R.J. Cutler e o próprio marido de Elton, David Furnish, que controla o retrato oficial. Não se espere, por isso, grandes revelações..Elton John com John Lennon, antes do concerto no Madison Square Garden, 1974..Na verdade, quem viu Rocketman, o biopic de 2019 protagonizado por Taron Egerton, encontrará mesmo semelhanças óbvias entre a abordagem dramática e a matéria documental, ambas com o selo de produção de Elton. A saber, a infância infeliz, o amor ao piano (que começou a tocar desde pequeno, como forma de evasão), a sua parceria extremamente sólida com o letrista Bernie Taupin, o relacionamento tóxico e abusivo com o empresário musical John Reid, as drogas, o álcool e o caminho de aceitação da sua identidade gay, tudo isto surge aqui numa soma de factos que nos remete para vários momentos do referido filme de Dexter Fletcher..Que memórias?.A novidade de Never Too Late passará pela bênção de termos Elton John na primeira pessoa, em circunstâncias informais como a gravação do seu podcast (Rocket Hour, um meio de promoção de jovens músicos) ou videochamadas com os dois filhos, e por um ou outro episódio mais concreto da sua vida – a propósito, uma das fragilidades do documentário é a quase ausência de histórias detalhadas que permitam aprofundar o relato geral de uma determinada fase. Por exemplo, volta-se muito ao capítulo da explosão do sucesso na década de 1970, à sua fachada enérgica, para falar da corrente subterrânea de tristeza que acompanhava a vibrante sucessão de álbuns, mas parece não haver acontecimentos particulares a reportar.O mais próximo que temos disso são as memórias de John Lennon, em que Elton conta como os dois, bem abastecidos de cocaína num quarto de hotel, se calaram que nem ratos, a fingir que não estava ninguém do lado de dentro quando Andy Warhol bateu à porta; uma cena recriada através da animação, para dar mais vida ao que a voz descreve..De resto, o último concerto de Lennon, sem que se pudesse adivinhar, foi mesmo partilhado com Elton John, no Madison Square Garden... Chegados à década de 80, somos transportados em ritmo de foguete para o presente, sem paragens na morte da amiga princesa Diana (e o tema Candle in the Wind) ou na relação com o marido, Furnish. É compreensível. Há aqui um sentido de pudor que procura a distância justa, e esta será uma narrativa em direção ao apaziguamento, com imagem de final feliz..Aliás, trata-se de celebrar também o encontro do verdadeiro amor e do conforto familiar que faltou a Elton John na infância. É por esse motivo – o querer passar mais tempo com os filhos em fase de crescimento – que a lenda pop britânica se retirou dos palcos e tratou de “despachar” uma autobiografia, escrita com a ajuda do jornalista Alexis Petridis, cujo áudio da série de conversas é usado parcimoniosamente ao longo do filme. Em Portugal, o livro, Eu, Elton John, foi lançado em 2019 pela Porto Editora, e faz parte deste período calmo (mas não inativo) da vida, longe do característico fortíssimo ao piano, agora substituído por uma serena consciência da mortalidade: “Os meus filhos sabem quantos anos tenho. Quero vê-los a casar e a ter os seus filhos, mas acho que não estarei cá para isso.”