Egas Moniz é um dos dois nobéis portugueses, mas, em muitos aspetos, é um ilustre desconhecido. Tirando o facto de ter recebido o Prémio Nobel da Medicina em 1949, o que sabia de Egas Moniz o biógrafo antes de começar a preparar este livro? Antes de começar a preparar, nada, além da questão da polémica em torno da suposta lobotomia, que ainda por cima tinha outro nome, leucotomia. Não sabia nada face ao que fui descobrindo. Depois, quando estava no processo de ver se aceitava fazer esta biografia ou não, principalmente sobre se havia margem de manobra para uma nova biografia, li o livro de João Lobo Antunes, e aí comecei a descobrir outras vertentes. Mas ainda havia muito mais a descobrir, quando, de facto, mergulhei na vida de Egas Moniz.Estamos a falar de um homem nascido em 1874 que foi deputado na monarquia, ministro dos Negócios Estrangeiros na República, um crítico do salazarismo, ou seja, é uma figura excecional mesmo fora da medicina?Sim. Principalmente o que me surpreendeu muito foi o papel já durante o Estado Novo. A biografia citada, e todas as obras que eu tinha lido, falavam um pouco do seu percurso político inicial. Mas a outra parte, de uma certa resistência a Salazar e ao regime, isso acho que nunca tinha lido ou apenas tinha visto abordado de forma superficial. Aí posso dizer que comecei a admirar o que fui descobrindo do biografado. Isto porque tentei assumir sempre uma postura muito recatada, muito recuada em relação ao que ia encontrando. O facto de Egas Moniz ter sido uma das vozes de resistência à ditadura foi talvez a grande descoberta para mim. E espero que também seja uma descoberta para os leitores. Indo um pouco às origens. Ele é um homem ligado a Avanca, Estarreja, na região de Aveiro, acaba por ser criado por um tio abade, mas é um homem que se vai distinguir pelo ateísmo, portanto, é alguém nada convencional na sociedade portuguesa a vários níveis.Sim, e até tem uma educação decorrente de ter ido para um colégio jesuíta na província. Eu julgo que há um facto marcante para o ateísmo, que é a morte da irmã, ainda muito jovem. Acho que Egas Moniz não consegue encontrar na religião uma resolução da sua dor, começando aí um certo distanciamento. Mas depois ele vai sempre conjugando esse lado rural, de Avanca e arredores, que nunca perde, nunca deixa, com o lado cosmopolita de Lisboa, de Paris, das viagens todas que faz ao estrangeiro. E realmente navega muito bem nos dois mundos: no mundo de ser político e ter que lidar com a questão religiosa, não sendo ele religioso, e no mundo de estar casado com uma mulher muito católica, a quem deixa mesmo ter um oratório em casa e uma série de quadros e de figuras religiosas. E ele seguindo sempre o seu caminho, navegando muito bem nos mundos por onde se movimenta. Há outro aspeto da vida dele que é o ter escrito um best-seller, A vida sexual, que é um livro de sucesso surpreendente, logo em 1902, que atravessa várias épocas e sempre a vender. Na biografia, refere dezenas de edições. Isto é também a prova que ele é uma pessoa muito pouco convencional, ousada, não é? A tese que ele escolhe para o doutoramento e para o concurso para lente da universidade é logo uma pedrada no charco. Numa Coimbra muito tradicional, muito conservadora, falar sobre a vida sexual, de uma forma até muito desbragada... Ainda hoje, lendo o livro, encontram-se descrições de atos que são muito... avançadas para a época, ou muito inusitadas. Não parece nada de estranhar que o livro se tenha tornado um sucesso, à medida que as pessoas iam tendo ideia do que estava ali, do que poderiam ler. Um dos tomos até inclui gravuras muito explícitas dos órgãos sexuais femininos. De facto, é um livro com muito sucesso, mas não só no campo científico, porque senão não teria tantas edições. Isto até vir a ser proibido pela censura já no Estado Novo.Há muitas razões para Egas Moniz não gostar do regime, e sobretudo percebe-se que com Salazar a relação nunca correu bem. Mas esta censura do livro para um homem que prezava tanto a liberdade de expressão, de espírito, é quase a gota de água que faz transbordar o copo na relação dele com o regime? Sim, é uma espécie de ferrete que aparece naquele momento. O livro é uma coisa muito objetiva, uma coisa muito física que pode ser passada a outra pessoa. E que, de repente, deixa de poder circular. Eu julgo que ele também leva isso muito a peito. Além de que Egas Moniz também era alguém que gostava da sua vida confortável, e um livro com tantas edições também continuaria a contribuir para essa vida confortável, rodeada de obras de arte e peças de colecionador. A proibição da venda do livro acaba por acentuar a clivagem com o regime, pois a censura deixa de ser uma coisa quase abstrata. Antes, seria só sentida em relação a outros; naquele momento, passa a afetar diretamente uma obra dele..Egas Moniz tem uma popularidade que o vai defender, de uma certa forma, contra a ditadura. É uma popularidade que tem a ver com ser um grande orador. É um autor que vende bem, é um professor prestigiado. E a partir de uma certa altura, também tem este lado de investigação científica, que começa em meados dos anos 1920, quando ele decide estudar a angiografia cerebral, e depois a leucotomia. Isto é também prova de que é um homem enérgico, que apesar de ter problemas de saúde, sofre de gota, é ambicioso e quer sempre fazer coisas novas. É um homem que a idade não acalma?Sim. É um homem que quer deixar a sua marca. Isso parece-me nítido, até porque, a certa altura, ele percebe que não vai deixar descendência direta, não vai ter filhos, e isso acho que ainda torna mais urgente a ideia dele de deixar um legado qualquer. Tenta primeiro deixar essa marca na política, a sua grande paixão inicial. Dedica a esse esforço os primeiros anos da sua vida ativa enquanto adulto. Mas a aparição do Estado Novo acaba por coartá-lo nesse caminho, e ele percebe que tem que encontrar uma segunda via. Vira-se então, de forma mais profunda, para o estudo do cérebro e das doenças nervosas. E, de facto, coloca nesse campo tudo o que colocou antes na política: toda a sua capacidade de inovação, de pensar fora da caixa. E com forças renovadas. Até parece que está nos seus 20 anos quando entra a fundo na parte da investigação, como se fosse um jovem acabado de se formar. Revela até uma energia surpreendente para quem tinha uma doença crónica, que muitas vezes o deixava prostrado durante dias ou até semanas. Mesmo assim, ainda consegue criar a obra que lhe vai proporcionar o Nobel.Fiquei com a impressão, lendo esta biografia, de que o Nobel chega porque obviamente há admiração por Egas Moniz fora de Portugal, mas que é muito o seu discípulo americano, Walter Freeman, que, ao aderir à técnica, vai torná-la bastante popular nos Estados Unidos, e dá o impulso decisivo. Vê isso assim? Vejo que há uma série de fatores. O Brasil foi o primeiro lugar onde Egas Moniz se sentiu muito acarinhado em relação às experiências científicas. Depois também houve movimentos importantes na Escandinávia e no Reino Unido. Mas, de facto, julgo que se não houvesse Walter Freeman, as coisas não teriam chegado onde chegaram. É Freeman quem acaba por massificar a operação. E chego a achar quase terna a forma como o norte-americano não atraiçoou Egas Moniz. Freeman, que introduz uma pequena alteração na operação original de Egas Moniz, passando-a da leucotomia para a lobotomia, poderia perfeitamente ter tentado ganhar o Nobel. Poderia ter tentado ser ele o cientista a ficar famoso, mas não. Desde o início, ele vê Egas Moniz como o seu mestre. E vai desdobrar-se em iniciativas concretas para o enaltecer, como organizar um congresso internacional em Lisboa, que serviu para consagrar a obra realizada por Egas Moniz. Mais um passo importantíssimo na candidatura ao Nobel e um ato de devoção do discípulo em relação ao mestre. Egas Moniz foi um homem de sucesso académico, primeiro em Coimbra, depois reitor da Faculdade de Medicina de Lisboa, foi presidente da Academia das Ciências, foi político de grande arte oratória, esteve envolvido em duelos de honra, mas há algo que acho realmente impressionante, que é ser alvejado oito vezes, e várias balas entram no corpo, mas sai do ataque por um paciente praticamente incólume. É uma espécie de super-homem que o biógrafo vê aqui?É alguém que tinha, de facto, uma resistência física e mental acima do comum. Numa carta, Walter Freeman escreve uma frase em que diz algo do estilo “você deve ter uma constituição de boi”, dito no sentido de ele ter conseguido suportar aquelas balas no corpo. De facto, em pouco mais de um mês, Egas Moniz consegue recuperar do atentado e está de volta à sua atividade no consultório e na faculdade. Não sei se um comum mortal, como nós, conseguiria superar aquele trauma da mesma forma. Mesmo mentalmente, não se ia abaixo com as coisas que lhe aconteciam. Dava sempre a volta. A vontade dele era estar sempre ativo; escrever todos os dias, mesmo quando estava doente. Hoje há críticas às técnicas de Egas Moniz, à leucotomia sobretudo, e tem-se falado muito disso, mas quando nós olhamos para a época e para aquilo que ele conseguiu, há uma série de histórias relacionadas com a investigação que são surpreendentes. Aquela, por exemplo, das cabeças decapitadas, levadas no carro, do Instituto de Medicina Legal para o hospital de Santa Marta. Não é uma distância muito grande, mas é feita discretamente para transportar umas cabeças decapitadas, a partir de cadáveres, para fazer a investigação científica. Não é mito?Não é mito, era mesmo assim. Egas Moniz e outros descrevem o episódio das cabeças enroladas em serapilheira, no banco corrido do motorista, que se afastava o mais possível daquela carga macabra. E seguiam todos com o medo de serem eventualmente mandados parar pela polícia, pois seria muito difícil justificar o que estaria ali a fazer no carro uma cabeça humana decepada. Mas isto é representativo como era feita na altura a investigação científica: de forma muito rudimentar, sem os meios necessários, e de forma encapuçada. Tinham de ser bastante engenhosos para chegarem aos resultados a que chegaram. Independentemente das polémicas posteriores sobre o mérito das investigações, Egas Moniz, que morreu em 1955, é uma figura ainda popular? Um Nobel da Medicina é algo de que os portugueses realmente se orgulham?Não sei se é assim tão popular, sinceramente. Penso que a questão em volta da lobotomia, para usarmos o termo que acabou por se generalizar, acabou por ofuscar muito o que foi a própria descoberta de Egas Moniz, e o que foram as suas contribuições para a psicocirurgia, especialidade que se abriu naqueles tempos. E também seria preciso ver o que se fazia antes com aquele tipo de doentes. Que soluções é que havia, numa altura em que não existiam os psicofármacos, que só apareceram no início da década de 1950? Não sei se Egas Moniz tem hoje a projeção que deveria ter. O que sinto mesmo é que Egas Moniz ficou demasiado rotulado por uma descoberta, quando a vida dele, a meu ver, é muitíssimo mais rica do que a leucotomia. É uma vida, de facto, aventurosa. Quase romanesca. Se quisesse encontrar uma personagem de romance, bem poderia ser Egas Moniz. E é o que esta biografia tenta dar às pessoas. A visão do homem como um todo, de uma vida que eu considero extraordinária, e que não se limita só a uma investigação que, depois, a história acabará por rotular como polémica. Penso que se deve mostrar o contexto da altura. Lermos o passado projetado à luz do nosso tempo é quase sempre um foco de injustiças. Mas, por acaso, até acontece que já na altura também houve resistências e polémica em torno da leucotomia. Na altura, o Nobel da Medicina foi muito celebrado internacionalmente e em Portugal, mas não pelo regime?O regime tinha uma má relação com Egas Moniz. E a atribuição do Nobel acaba por lhe dar uma certa capa protetora, algo que lhe permite ser ainda mais vocal na oposição ao regime, em várias entrevistas onde profere frases muito fortes sobre a falta de liberdade no país, ou em várias posições que vai assumindo. O Estado Novo até tenta aproveitar o prestígio associado àquele galardão internacional, mas o Nobel é um prémio pessoal. Foi entregue a Egas Moniz. Por isso, a relação entre o médico e o regime de Salazar acabou por ficar ainda mais inquinada.