Edição de 'Os Lusíadas' em arménio
Edição de 'Os Lusíadas' em arménio

'Os Lusíadas' já têm edição em arménio

Vahé Mkhitarian, presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia, que tem promovido a edição de obras portuguesas em arménio, e a tradutora Lusiné Brutyan, explicam ao DN como surgiu a ideia.
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Os Lusíadas têm já uma edição em arménio, anunciou agora Vahé Mkhitarian, o presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia, que explica ao DN como surgiu esta ideia de avançar com a tradução da epopeia escrita por Luís Vaz de Camões: “A ideia de traduzir Os Lusíadas para a língua arménia nasceu em 2016, durante a apresentação da Associação de Amizade Portugal-Arménia, no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian. Nesse momento, enquanto presidente fundador, partilhei com todos os presentes um dos objetivos centrais da nossa Associação: promover o conhecimento e a aproximação entre os dois povos através da cultura, e em particular através da literatura e música. Desde o início ficou claro que a tradução de obras fundamentais da literatura portuguesa para o arménio, e de autores arménios para o português, deveria ser um dos projetos-bandeira da nossa atividade”.

E acrescenta: “Algum tempo depois, durante uma viagem à Arménia, tive a oportunidade de conhecer Lusiné Brutyan, tradutora franco-arménia, formada na Universidade de Línguas Estrangeiras de Erevan e também antiga aluna da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi ela quem, com grande entusiasmo e competência, se juntou ao projeto e tornou possível transformar essa ideia em realidade. A sua experiência e ligação direta às duas línguas e culturas permitiram garantir a qualidade e a fidelidade destas traduções. Até então, o público arménio conhecia muito pouco da literatura portuguesa. O nome de José Saramago era reconhecido, sobretudo pelo Prémio Nobel, mas não havia obras traduzidas para a língua arménia que permitissem um contacto real com a riqueza da literatura portuguesa. Sentimos, por isso, que era essencial abrir esse caminho. Decidimos começar por três autores que são, de diferentes formas, pilares da cultura portuguesa: Fernando Pessoa, cuja poesia continua a inspirar leitores em todo o mundo; José Saramago, o escritor português mais conhecido fora de portas, e naturalmente Luís Vaz de Camões, com a sua epopeia fundadora Os Lusíadas."

"A tradução de Os Lusíadas foi, neste sentido, um gesto simbólico e profundamente significativo. Por um lado, permitiu que os leitores arménios tivessem acesso a um dos maiores clássicos da literatura mundial; por outro, reforçou o diálogo cultural entre Portugal e a Arménia, mostrando como a literatura pode servir de ponte entre diferentes tradições e sensibilidades”, diz Mkhitarian.

Sublinha ainda Mkhitarian, economista de formação que há um quarto de século viver em Portugal e é fluente em português, que “o interesse dos arménios pela literatura portuguesa existe e está em crescimento. Acreditamos que estas traduções são apenas o início de um percurso mais longo, no qual mais obras poderão ser partilhadas e apreciadas mutuamente. A literatura tem essa força: aproximar povos e abrir horizontes”.

A Lusiné Brutyan pergunto se a primeira estrofe da epopeia portuguesa - a célebre "As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram." - foi especialmente difícil de traduzir, como muitas vezes é dito?

“Traduzir a primeira estrofe d'Os Lusíadas foi uma experiência marcante que realizei há muitos anos, quando ainda dava os meus primeiros passos na língua portuguesa. Como tradutora, sempre tive um interesse quase obsessivo em descobrir como diferentes obras, ainda não traduzidas, se apresentariam em arménio, tanto em forma quanto em melodia. Ao trabalhar nas primeiras oito linhas, fiquei verdadeiramente impressionada com a beleza lírica e harmoniosa que surgia. O uso da rima parecia fluir de forma natural e suave. Depois de ler algumas vezes, deixei a tradução de lado, pensando que nunca conseguiria ir além de “As armas e barões assinalados”. Anos depois, ao concluir a tradução de Mensagem de Fernando Pessoa, ganhei a coragem necessária para mostrar a minha versão da primeira estrofe ao presidente Vahé Mkhitarian. Ele analisou o meu trabalho com atenção e demonstrou grande aprovação, afirmando que a tradução em arménio era plenamente compreensível e precisa."

E acrescenta: "Após mais dois anos, decidimos iniciar a ambiciosa tarefa da tradução completa da obra de Camões. Quando comecei, não mexi na primeira estrofe; optei por iniciar pela segunda, pois estava ainda a ganhar confiança. Após concluir a tradução da segunda, retornei à primeira estrofe e troquei a primeira palavra, 'As armas', que originalmente havia traduzido como “pessoas que portam as armas”. Na verdade, referia-me às armas em si, pois Camões presta grande homenagem a elas em toda a sua obra. As armas portuguesas, além de suas grandes habilidades, superavam as de outros povos da época, deixando os mouros e os indianos impressionados. 'As armas', sem dúvida, são uma alegoria das proezas militares portuguesas, mas também aludem às armas físicas, ao poder e à glória. Era crucial retratar «armas' de maneira mais autêntica, refletindo tanto o significado literal, quanto o simbólico que Camões nos sugere com sua escrita rica em metáforas e alusões históricas.”

Vahé Mkhitarian e Lusiné Brutyan fotografados pelo DN em 2022 quando lançaram 'Mensagem' em arménio
Vahé Mkhitarian e Lusiné Brutyan fotografados pelo DN em 2022 quando lançaram 'Mensagem' em arménio

A tradutora vive há oito anos em Portugal, e depois de uns primeiros meses de aprendizagem autodidata da língua portuguesa em Erevan veio para Lisboa estudar com uma bolsa atribuída pelo Serviço das Comunidades Arménias da Gulbenkian, fundação que tem o nome de um magnata arménio do petróleo que viveu os últimos anos em Portugal mas não esqueceu nunca o seu povo.

Brutyan conta que “como leitora e tradutora, vivi uma variedade de emoções e reflexões profundas ao trabalhar com essa obra monumental de Camões. Eu tinha a responsabilidade de traduzir um texto que é verdadeiramente querido ao coração de qualquer português, o que me trouxe uma enorme carga de responsabilidade. Ao começar a ler e traduzir, experimentei um espanto genuíno e uma admiração profunda pela beleza, pelas metáforas e pela riqueza das ideias expressas ao longo de cada estrofe. Logo, senti um envolvimento quase total; quase me sentia como uma tripulante prestes a descobrir o indiscutível, navegando por mares de criatividade e história. Foi uma viagem fascinante, repleta de desafios e surpresas a cada novo verso. Senti um orgulho imenso por fazer parte dessa obra magnífica, reconhecendo que completar a tradução de um texto tão significativo é, sem dúvida, uma conquista digna de verdadeiro orgulho. A alegria intensa de conseguir concluir a tarefa e o prazer indescritível de ver uma obra traduzida de maneira eficaz e ressonante foram momentos verdadeiramente eufóricos, que ficarão gravados na minha memória para sempre. Essa experiência só reforçou a importância da tradução como uma ponte cultural.”

Com primeira edição em Lisboa em 1572, Os Lusíadas tiveram ao longo dos séculos tradução para várias línguas, desde logo espanhol, francês e inglês. O poema épico, que conta a viagem de Vasco da Gama à Índia, e também a História de Portugal, continua a fascinar e nos últimos anos saíram também as traduções para turco, por Ibrahim Aybek, e para árabe, pelo tunisino Abdeljelil Larbi. Ambos os tradutores vivem em Portugal.

A Associação de Amizade Portugal-Arménia, que no próximo ano celebrará uma década, está cheia de projetos, assegura o presidente: “Como referi anteriormente, a nossa Associação começou por escolher três dos mais importantes escritores portugueses para traduzir para a língua arménia. O primeiro livro foi a Mensagem de Fernando Pessoa, lançado no final de 2022, num auditório cheio de uma das principais livrarias de Erevan. Estiveram presentes académicos, leitores apaixonados e também representantes dos principais canais de rádio e televisão da Arménia. Mais tarde, em janeiro de 2023, organizámos a apresentação do mesmo livro na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Foi um momento especial e quase mítico para mim: apresentar a primeira tradução arménia na própria casa onde o poeta viveu, na presença da diretora do Museu, Clara Riso. O livro encontra-se à venda nas lojas da Fundação Calouste Gulbenkian e tem despertado grande interesse, tanto entre colecionadores portugueses de obras de Fernando Pessoa como entre turistas arménios. A segunda tradução publicada foi As Intermitências da Morte, de José Saramago, lançada em 2024. Trata-se de uma obra fascinante, que envolve profundamente o leitor e deixa uma marca duradoura após a leitura. O seu sucesso foi notório e, no recente Erevan Book Fest 2025, este título foi o mais vendido da nossa editora parceira, o que muito nos orgulha."

Destaca ainda Mkhitarian: "O próximo livro a ser lançado será Black Angel: A Life of Arshile Gorky, escrito por Nouritza Matossian, autora britânica de origem arménia. Esta obra retrata em profundidade a vida do célebre pintor de origem arménia Arshile Gorky, uma das figuras mais marcantes da arte moderna americana. Recordo que o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian já organizou exposições dedicadas a este artista, o que reforça ainda mais a pertinência desta tradução. O nosso objetivo é também, futuramente, traduzir esta obra para português, permitindo que o público português descubra melhor a história e o legado de Gorky. Paralelamente, estamos a preparar a tradução de obras de escritores arménios, incluindo autores de origem arménia que escreveram noutras línguas, bem como de escritores estrangeiros que abordaram a Arménia. Queremos oferecer aos leitores portugueses um panorama diversificado e profundo sobre a cultura e o povo arménio".

Mkhitarian faz questão de relembrar o apoio fundamental da Fundação Calouste Gulbenkian, da DGLAB- Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas e do Instituto Camões, parceiros decisivos na concretização dos projetos.

A Associação de Amizade Portugal-Arménia não se limita a promover traduções, pois também desenvolve, diz igualmente Mkhitarian, “iniciativas de música erudita com a Orquestra Consonância, organizou o projeto de ensino da língua arménia através de leitorado de Língua e Cultura Arménias na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, atividades de cinema — como o primeiro festival de cinema português em Erevan, a participação de filmes dos realizadores portugueses no Festival Internacional de cinema Golden Apricot em Erevan e a retrospetiva única do realizador arménio Serguei Parajanov na Cinemateca Portuguesa em Lisboa em março passado —, e prepara ainda exposições e muitas outras iniciativas culturais”.

A antiguidade da Arménia é tal que o país tinha relações próximas com o Império Romano. Foi também o primeiro país a adotar o cristianismo como religião oficial, logo no início do século IV. Hoje está limitado a um pequeno território no Cáucaso, com apenas três milhões de habitantes, mas conta com uma diáspora numerosa que se mantém ligada à nação e defende o seu fortíssimo legado cultural. O arménio é uma língua indo-europeia, que tem uma alfabeto próprio, que remonta ao século V.

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Primeira tradução para arménio de Mensagem de Fernando Pessoa

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