O título do filme Não Sou Nada provém do poema Tabacaria. O certo é que Fernando Pessoa acrescenta: "Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Será que, ironicamente ou não, "todos os sonhos do mundo" poderia ser um título alternativo para o teu filme? Primeiro, é preciso esclarecer que o título foi escolhido pela Luísa Costa Gomes [co-argumentista do filme] e depois eu acrescentei The Nothingness Club [à letra: "O Clube do Nada"]. Durante muito tempo, usei o título como um mantra: cada vez que me questionava, dizia aos amigos, e em particular aos camaradas de trabalho, "não sou nada" - de alguma maneira, era uma forma de me tranquilizar. Dito isto, a palavra "todos" para referir os "sonhos do mundo" é algo que eu nunca usaria num filme..Porquê? Há uma expressão do Pessoa de que eu gosto muito: "o cansaço de todas as hipóteses..." É algo que me acontece com frequência quando estou a fazer um filme, seja na preparação, na rodagem ou na montagem: decorre do facto de haver tantos pontos de vista sobre a mesma coisa que, às duas por três, se torna extenuante. O Pessoa tentava sempre ver tudo a partir de vários ângulos e o facto de ele ter criado personagens, "personas", tão diferentes, do António Mora ao Alberto Caeiro, leva-me a entender que é impossível ver tudo a partir de todos os lados - o que podemos é tentar obter um espectro de pontos de vista tão alargado quanto possível. Por isso, creio que o "todos" que ele usa não quer dizer "todos": são "todos os sonhos" que ele tem - "todos os meus sonhos". Para mim, esses sonhos são hipóteses de ver o mundo..Essa perspetiva justifica, ou não, uma classificação que, por vezes, surge associada ao teu trabalho quando és definido como um "cineasta experimental"? É ainda uma questão de hipóteses: isso só faria sentido se eu colocasse todas as hipóteses nos filmes. Quero eu dizer que há uma diferença entre metodologia do trabalho e o objeto em si, o objeto que resulta desse trabalho. Quem também se cansou dessa classificação foi um compositor como o John Cage, acabando por perceber que o resultado era experimental para quem está a ver, não para quem faz. Quando se faz, experimentou-se muito para chegar a uma determinada conclusão - seja num filme da Marvel, seja num filme de vanguarda....Há, então, outra palavra? Prefiro sempre a palavra experiencial. Recentemente, o filme passou em Inglaterra, no Chichester Film Festival, onde havia um júri do público cujos elementos eram, na maioria, senhoras com mais de 60 anos. Uma delas veio dizer-me: "Ah! Estava a ver o filme e de repente senti que saía da minha cadeira e entrava na cabeça do Fernando Pessoa e também na tua cabeça..." Foi o melhor comentário que poderia ter ouvido, até porque ela disse aquilo com a imensa curiosidade de quem quer conhecer o universo do Pessoa. Não é que eu faça filmes "imersivos" como, por exemplo, o James Cameron - sigo métodos completamente diferentes, mas também procuro entrar num universo e, num certo sentido, não sair de lá..Isso está de algum modo resumido numa curiosa expressão que encontramos na sinopse oficial do Não Sou Nada, definindo o filme como "um thriller psicológico dentro da cabeça de Fernando Pessoa". Ao mesmo tempo, não parece que a abordagem de Pessoa seja meramente psicológica, para mais numa narrativa que, não poucas vezes, tende para o surreal. Não há muita psicologia no filme. Tentei exatamente o contrário: expor, não analisar. A ideia de que os loucos, ou aqueles a quem chamamos loucos, podem participar connosco numa aprendizagem mútua, essa ideia está no filme - aliás, está presente no próprio Pessoa, já que ele, um pouco à imagem de Abel Salazar, é alguém que decidiu auto-internar-se..Para utilizarmos uma palavra que está na moda, até que ponto essa loucura é uma disfunção da mente, algo que resulta de um corte com o mundo à nossa volta? E será que esse corte é, sobretudo, de natureza artística? Provavelmente, é o contrário: não é um corte, é uma atenção enorme àquilo que está a acontecer, com muitas antenas para o sentir. Aquilo de que Pessoa fala é da "loucura curiosa" - e essa é a loucura mais perigosa para o poder, já que uma pessoa curiosa está informada e o conhecimento é uma arma. Quando o conhecimento é aplicado sem ser formatado, isso pode transformar-se num modo de combater a forma vigente de ver a realidade..Qual é, então, hoje em dia, a forma vigente de ver a realidade? Já vi imagens da Ucrânia que me levam a dizer: não sei se isto são imagens reais... Há uma fronteira, com os jogos de vídeo, que começa a desaparecer. No cinema dito de autor, a forma vigente de ver a realidade é como uma coleção de caixas em que é preciso pôr uma cruzinha. Aquilo que eu faço, não tem que ver com essas caixas....Que caixas são essas? Decorrem da multiplicidade do pensamento politicamente correto. Tanto pode ser o neo-realismo "poético", como o conceito do que deve ser um filme "artístico". Importa questionar as situações em que a chamada vanguarda é aceite... Não estou a desvalorizar os prémios, não é isso: o que me parece é que todos os artistas devem pensar naquilo que, de certo ou errado, estão realmente a fazer..Podemos então dizer que Não Sou Nada é um filme ligado a uma certa utopia? Ou movido por um desejo utópico? Sem dúvida. E a utopia maior do filme é o amor..De que modo? O amor significa a entrega incondicional ao outro. Ao mesmo tempo, tudo o que seja uma paixão enorme pelo trabalho que estamos a fazer, vai de alguma forma roubar espaço a essa entrega. O próprio Pessoa explica isso mesmo a Ofélia numa carta que está no filme: o amor por aquilo que fazemos torna mais difícil o amor pelos outros. Essa espécie de emulação que alguém pode experimentar, não apenas um artista, mas qualquer pessoa que goste muito do que faz, pressupõe um sacrifício - o amor por aquilo que fazemos torna mais difícil, de alguma forma, o amor pelos outros. E não estou a falar da capacidade de ser empático ou solidário, não estou a esvaziar a humanidade de cada um. Se olhar para trás, há partes da minha vida que, de um ponto de vista emocional, são catastróficas, mas o que me aguentou sempre foi essa paixão e o meu mundo interior..Quando a personagem de Ofélia surge, algo muda no tom do filme. Fará sentido dizer que o filme tem qualquer coisa de ensaio sobre as relações masculino/feminino? Sobre a relação entre pessoas, sim, masculino/feminino ou outra... mas isto tudo é como uma armadilha. Como diz o Pessoa, aquilo que amamos é a ideia de amar. Ele ama uma mulher cujas frases que diz foram todas escritas por ele - ele não tem nenhuma carta da Ofélia. Ou seja: a pessoa perfeita é uma construção dentro da nossa cabeça..Como a Ofélia, precisamente... A mulher perfeita, idealizada, acaba por se tornar uma "femme fatale". A Ofelinha da vida real não é a mulher idealizada. A mulher idealizada é aquela que vai dar luta, acabando por nos mudar... Daí que eu tenha imaginado a Ofélia como um anti-vírus, como nos computadores: eu dizia à Victoria Guerra que ela era o anti-vírus que ia "desfragmentar" a cabeça dele, para ele ficar só um..Quer isso dizer que, no amor, há sempre uma dimensão de logro? Não, não quero generalizar. O que eu digo é que quem está muito obcecado tem muito mais dificuldade em confrontar a sua idealização com a realidade. Há muitas pessoas que não têm a tal loucura curiosa - e é essa curiosidade que mata o gato [riso]. Foi um bocadinho como naquele filme do Quentin Tarantino em que ele mata os nazis todos, alterando a própria história [Sacanas Sem Lei, 2009]. Quer isso dizer que, com o cinema, não temos que seguir a tradicional linha temporal, podemos criar novas linhas temporais: no Não Sou Nada, Pessoa viveu mais tempo, ganhou dinheiro, até ganhou um Nobel....Encenas um universo que possui uma dimensão utópica; falas de uma personagem que "não é nada", mas quer ser tudo, ou pode ser tudo; há um conjunto de acontecimentos que não respeita a linearidade da história... Tendo tudo isso em conta, que relação é que o filme pode estabelecer com o espectador? Ou que esperas do lado do espectador? O objetivo principal do filme é, realmente, estimular a curiosidade. Tendo em conta as exibições que já teve, só me posso dar por satisfeito. Lembro-me, a propósito, que o regime fascista considerava que o mundo inteiro sabia das Descobertas: ora, nem sequer sabiam de Portugal, quanto mais das Descobertas - sabiam dos espanhóis... No atual regime, existe a ideia de que o Fernando Pessoa é uma figura mundial, tipo Cristiano Ronaldo. Não é, de todo. Aliás, o Rodrigo Areias [produtor do filme] fez um périplo internacional por produtores e distribuidores e não sabiam quem era o Pessoa - se sairmos do mundo literário e passarmos para outro universo, ainda dentro do mundo artístico, o Pessoa não é assim tão conhecido. Desse ponto de vista, o desafio era enorme, já que este é um filme que procura estabelecer uma ponte do espectador com um escritor que eu gostaria que fosse muito mais conhecido. Por isso, o filme é também um agradecimento enorme pelas horas de leitura e releitura dos seus textos..Foi também uma auto-descoberta? Foi muito isso, o filme tem qualquer coisa de ato terapêutico [riso]... mesmo não sabendo se resolveu o que quer que seja.