"O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou (…)”, escreve José Saramago na abertura de Levantado do Chão, romance que é uma autêntica epopeia dos trabalhadores alentejanos, sujeitos aos rigores da canícula e do latifúndio. Tivesse a obra do Nobel da Literatura uma banda sonora e é possível que esta fosse o cante coral alentejano, classificado como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO há precisamente dez anos. .Rodrigo Custódio não se lembra desse dia de festa porque conta apenas 12 anos de idade, mas a verdura dos anos não o impedem de dar já o seu empolgado - e afinado - contributo ao Grupo Cardadores da Sete, sediado na Aldeia da Sete, concelho de Castro Verde. Do outro lado da mesa a que nos sentamos, unidos pelo amor a esta expressão musical e ao pedaço de Alentejo em que ambos nasceram e vivem, está Álvaro Mira, 82 anos, cantador dos Ganhões de Castro Verde. Entre eles está Pedro Mestre, músico, investigador e incansável divulgador deste género musical. Todos representam momentos diferentes da História do cante alentejano ou, afinando a precisão do conceito, do cante coral alentejano. .Pedro Mestre, Rodrigo Custódio e Álvaro Mira - três gerações do cante juntas no centro do Cante Alentejano em Castro Verde.Foto: Gerardo Santos.Canto de resistência.Álvaro Mira vem de um tempo em que o cante era uma expressão de resistência a um regime político e laboral que oprimia com particular crueza os trabalhadores agrícolas. Os homens e as mulheres que faziam da região “o celeiro de Portugal”, tão propagandeado pelo Estado Novo: “Eu teria uns 17 anos quando fazia parte de um grupo de moços (o mais velho teria talvez 20 anos) que andava pelas ruas a cantar uma moda chamada O Barco de Santa Maria. Nem sabíamos muito bem dar o valor à letra.” Álvaro ainda nos recita de memória os versos, claramente alusivos ao assalto ao navio Santa Maria, em 1961: “O barco de Santa Maria, carregadinho de flores, vai em águas estrangeiras/e é o rei dos meus amores/É o rei dos meus amores mais aqueles que lá vão/Deitem fora Salazar e viva Henrique Galvão/Viva o Henrique Galvão, viva o nosso novo estado/Deitem fora Salazar e viva Humberto Delgado”. .Ato contínuo, uma vizinha, ao ouvir canção tão insurrecta, ameaçou-os com a guarda e, como recorda Álvaro, “abalámos a cantar para outra rua.” Esses eram os tempos em que os rapazes começavam a cantar em casa, quase sempre com o pai, e acabavam a circular pelas tabernas da vila ou aldeia, porque, como lembra Álvaro Mira, “essa era a forma de irmos bebendo o nosso copito.”.Pedro Mestre, nascido já em plena democracia, conheceu uma realidade muito diferente, em que “as próprias tabernas já não queriam lá os cantadores porque achavam que estes incomodavam os clientes. Também me aconteceu, fui impedido de cantar num local desses porque o dono receava que lhe afastasse a clientela.” .Antes de mais, Pedro considera que não podemos encarar o cante como uma expressão monolítica no tempo, no espaço e na forma: “Há muitas vidas neste género musical. Nos anos 90, todas as aldeias no Baixo Alentejo tinham grupos corais e eles próprios gostavam de organizar eventos em que cantavam uns para os outros”, mas, progressivamente, o cante passou a ser encarado, no país, e mesmo no próprio Alentejo, como “uma coisa de um tempo velho, a que não se queria voltar.”.Este panorama modificou-se há uma década, com a classificação como património imaterial da Humanidade: “Mudou a forma como o país encarava este legado. Se calhar, isto até era uma coisa a valorizar”, lembra Pedro Mestre. Mas nem tudo tem corrido no melhor dos mundos. A classificação pode ter trazido notoriedade, mas não é isenta de riscos..Os riscos da uniformização.O maior risco, aponta ainda Pedro Mestre, é a progressiva turistificação do género, criando uma coisa amável, para consumo alheio, indiferente, por exemplo, ao facto de, mesmo no Baixo Alentejo, “a pronúncia ser diferente de vila para vila, em Ourique, por exemplo, é diversa de Castro Verde ou de Almodôvar.” O que este músico defende é a criação de um plano de salvaguarda, que tenha em conta as várias formas de cantar o Alentejo: “A candidatura partiu logo mal porque deveria ter-se apresentado como cante coral alentejano.” Em resultado desta “confusão de conceitos”, como lhe chama Pedro Mestre, “hoje corremos o risco de perder os preceitos do género”. E fala de novos grupos, que alegadamente não interagem com os mais velhos e fazem tudo a partir de vídeos que ouvem e veem na internet: “O resultado são umas harmonias muito bem trabalhadas com naipes de vozes, que não é de todo a tradição neste género.”.O que falta? “Os teóricos devem interagir mais com os cantadores. Ir às tabernas, ir aos lugares de ensaio, onde os mais velhos cantam. Os bons cantadores são e serão os que se metem entre os velhos, mas não há muitos jovens que o queiram fazer. O resultado é que o cante está hoje nas mãos dos políticos, que, na sua maioria, querem apenas um produto para vender a quem vem de fora.”.Todas as semanas Pedro Mestre leva o cante aos alunos da Escola Básica N.1 de Mértola.Foto: Gerardo Santos.Mas este não tem de ser o fado do cante. Na aldeia da Sete, o jovem Rodrigo Custódio assegura “gostar de ouvir as experiências e lições dos mais velhos” e não o desmente a atenção e o carinho com que ouve o que nos conta Álvaro Mira. Rodrigo, que começou a cantar com o pai, também ele cantador, lembra com especial carinho “a oferta de uma viola campaniça”, quando tinha 5 anos. Aos 9 começou a ir aos ensaios dos Cardadores da Sete e, um ano depois, entrou para o grupo. “Ainda não sei o que quero fazer na vida, mas também estou a estudar música na delegação do Conservatório de Música, em Castro Verde”, afirma..O Rodrigo não é caso único. Em várias escolas básicas do Alentejo, o cante integra a oferta de atividades curriculares complementares. É o caso da Escola Básica n.º 1 de Mértola, onde os alunos do 4.º ano recebem todas as semanas as visitas de Pedro Mestre para um tempo letivo (cerca de 45 minutos) dedicados a esta forma musical. Para a professora Isabel Gonçalves, natural do concelho, “é um momento sempre muito bem recebido pelos alunos, tenham eles tradição de cante nas famílias, ou não. Até mesmo as crianças vindas do estrangeiro gostam, porque a música e a dança é sempre apelativa nesta faixa etária.”.Neste momento, os alunos ensaiam modas religiosas, alusivas ao Natal, mas logo se seguirão as janeiras, os temas de Carnaval, Páscoa e 25 de Abril. Tudo isto acompanhado por danças de roda, em que rapazes e raparigas ainda têm algum pudor em dar os abraços de que fala a moda, mas em que todos riem muito. Pedro Mestre assume a decisão, nem sempre aceite pelos mais puristas, de introduzir a viola campaniça nestas aulas para o 1º ciclo: “As crianças sentem-se muito mais atraídas se houver um instrumento musical, que as ajuda a afinar a voz. É mais difícil cativá-los se fizermos tudo à capela.”.Neste momento, o cante está ainda a recuperar dos efeitos da pandemia, durante a qual muitos grupos históricos encerraram atividade e ainda não reabriram, como lamenta Álvaro Mira: “A pandemia estragou um bocadinho o cante. Muitas mulheres e muitos homens deixaram e não voltaram. Não porque tivessem morrido, mas porque perderam o hábito.” Ainda assim, o cante procura manter-se fiel à sua essência. Aquela de que falava o etnomusicólogo francês Michel Giacometti (a que o património musical português tanto deve) numa entrevista ao jornal República, em 1967: “ O cante é tributário e testemunha de certas estruturas económicas e sociais específicas, desenvolveu-se, antes de mais nada, nessas comunidades de homens, ombro a ombro unidos, como filhos do mesmo labor. Mas, companheiro de trabalho, está igualmente presente na casinha do ganhão nas horas de folga, presente ainda nos dias de festa e nas horas cerimoniais, quando, como tantas vezes sucede, ritos religiosos e agrícolas se confundem. E é por isso que ele sabe exprimir toda a gama de sentimentos e emoções de um povo que, através dele, preserva uma certa forma de unidade espiritual.”.A vida de Álvaro Mira é a expressão viva das palavras do estudioso, já que o cante nunca o deixou, nem mesmo quando trabalhou no Norte do país, em Lisboa ou nos cinco anos que passou emigrado na Alemanha: “Em Portugal, cantava com outros rapazes nas tabernas, na Alemanha era com um moço de Almada e outro de Baleizão.” De regresso à sua Castro Verde, onde começara a trabalhar numa mina aos 14 anos, Álvaro ainda arranjou tempo e paciência para ensinar cante nas escolas do concelho. Aos 82 anos, o seu sonho é ajudar a encontrar uma sede para o seu Grupo Coral os Ganhões.