São duas cineastas de gerações distintas e com um cinema sem pontos de comum. A húngara Ildikó Enyedi e a francesa Céline Sciamma apenas confluem num ponto: um ponto de vista profundamente feminino. Na semana passada estrearam nos cinemas portugueses os seus novos filmes, respetivamente A História da Minha Mulher e Petite Maman- Mamã Pequenina, dois exemplos de estilos e abordagens opostas. Ambas são neste momento nomes respeitados na indústria do cinema de autor. Enyedi ainda a capitalizar a aclamação da obra anterior, Corpo e Alma, o brilhante vencedor do Festival de Berlim, e Sciamma a desfrutar do sucesso de Retrato de uma Rapariga em Chamas, proposta de cinema romanesco que seduziu nas bilheteiras de França e encantou Cannes..Num terraço de Cannes numa manhã solarenga, Ildikó Enyedi está particularmente sorridente. Diz-me que correu muito bem a projeção oficial de A História da Minha Mulher, épico romanesco cuja escala de produção não deixa de ter uma ambição pouco habitual nos nossos dias. É um filme marcado pelo magnetismo dos atores, da contenção do holandês Gijs Naber, à insinuação de Léa Seydoux e discrição de Louis Garrel numa história que adapta o livro de Milán Fust onde se narra em quase três horas a história de amor de um capitão de um navio comercial europeu e a sua nova mulher, uma loura com um passado misterioso. Entre a parábola sobre o ciúme no masculino e uma possibilidade de fresco sobre as convulsões da velha Europa, A História da Minha Mulher contou com financiamentos da Alemanha, Hungria, Itália e França.."Apaixonei-me por este meu capitão dos mares! Sinto que o compreendo muito bem, tal como todos os seus erros, imperfeições e falhas. É fácil percebermos o seu estado de desorientação e a forma como vai perdendo o pé no seu mundo. Queria levar as pessoas pelo seu processo complexo e ver como no fim ele pode finalmente compreender algo sobre a vida", começa por dizer a realizadora de 66 anos. "Este filme é sobre como compreender o outro e também como perceber que nunca poderemos ter todas as respostas", continua enquanto avisa que não vê o seu trabalho como um veículo de ideias românticas: "o amor é apenas um estado de comunicação humana"....Enquanto saboreia calmamente uma água junto à piscina do hotel, a cineasta esclarece que nesta altura na Hungria os tempos não são fáceis para quem é artista: "trinta anos depois continuamos na luta. É pena, mas é verdade, nunca imaginei isto...Por outro lado, nunca fui dos artistas a protestar de forma militante, prefiro sempre um outro tipo de combate através dos meus filmes nos quais contraponho o que é mais importante na vida. Já quando era estudante de cinema e fazia o meu cinema experimental acreditava muito mais neste tipo de atitude de resiliência e de teimosia, mesmo quando por vezes chocava com o poder. Sabe que mais? Nunca quis ser espelho do poder nem mostrar o que dali sai..."..Se é verdade que estamos a viver um período em que cada vez temos mais cinema feito por mulheres, também não é menos verdade que a imprensa parece estar cada vez mais a fazer uma espécie de competição entre géneros, sobretudo quando se fala em palmarés dos festivais - agora é muito comum fazerem-se contas e haver o sublinhar que por exemplo nas últimas edições de Cannes, Veneza e Berlim os filmes vencedores foram de mulheres...Sobre isso, Ildikó e a sua veia feminista são bem audíveis: "muitos homens nesta indústria do cinema têm ainda de levar algumas lições, ou seja, ainda há alguns degraus para serem percorridos...Mas nós mulheres cineastas já mostrámos o que fazemos: é um cinema feito com a nossa força, a nossa paixão. Por exemplo, este filme é uma visão muito feminina de como um homem pode perder poder e ganhar uma outra vida...De alguma maneira, a sua mulher dá-lhe um presente: saber viver a vida de forma mais complexa e imprevisível."..Por sua vez, Céline Sciamma numa chamada de zoom durante os encontros da Unifrance que promovem o cinema francês, prefere salientar que quando se fala em igualdade de género no cinema estamos a entrar num tema político: "seja como for, ultimamente as cineastas francesas têm tido muito sucesso internacionalmente e isso só ajuda, sobretudo para fazer entender que é importante dar voz aos autores mais marginais. Sinto-me cada vez menos sozinha, finalmente as mulheres estão a ter o reconhecimento que já mereciam. Tudo isto não me ajuda especificamente pois não sou um bom exemplo na medida que as coisas sempre me correram bem - os meus filmes viajaram e tive sucesso, mas repito: tudo isto é positivo. O único problema é que esta maré pode vir a desaparecer...Não esquecer que o cinema está numa crise"..Em Petite Maman encena uma pequena fantasia: uma menina de 8 anos conhece num bosque mágico a sua mãe quando tinha a mesma idade. Um episódio resultante de um processo de luto. Céline Sciamma filma tudo com uma doçura não enjoativa e com um respeito imperial pela condição da infância. Nesse domínio, faz lembrar o efeito encantatório de Ponette, de Jacques Doillon. Não é mesmo por acaso que a cineasta esteja realmente feliz com as reações que tem tido de quem se apaixona pelo seu filme: "tenho recebido muito amor com este filme! Este movimento de apoio coletivo penso que corresponde a um momento muito especial da nossa vida, ou seja, a infância...E a um momento em que depois da pandemia estamos todos menos forte. Este apoio a Petite Maman era algo que necessitava, fez-me bem. Ir de encontro às personagens infantis é qualquer coisa que liga bem com aquilo que quero fazer em cinema. Uma criança é uma observadora e que bela maneira de observar a vida"...E sobre a proximidade com Ponette, Sciamma também falou: "fiquei muito abalada quando Ponette foi lançado! Era muito jovem e um filme nunca antes me tinha atingido tanto. Depois, aquela menina...Ponette é daqueles filmes que quando o vemos percebemos que depois daquilo que temos de levar muito a sério uma criança. Faz parte do grupo de filmes que coloca uma criança no centro. Filmes como Ponette, Os Quatrocentos Golpes, O Garoto de Charlot ou ET- O Extraterrestre são também importantes na História do cinema. E a França tem também uma forte tradição de filmes com crianças feitos para adultos, embora o meu filme seja também para os miúdos. Aliás, é o meu primeiro filme para a família. Tenho visto crianças depois das minhas sessões que saem de lá encantadas! A questão da avó é muito importante, tive algumas crianças a dizerem que se tivessem visto Petite Maman antes de perderem a avó a dor seria menor"..Fusão de apontamentos dos fetiches da infância da realizadora, Petite Maman esteve em competição no Festival de Berlim do ano passado, um festival inteiramente digital. Céline Sciamma não quis esperar pela reabertura dos festivais: "acabei o filme depressa porque queria que ele fosse visto durante aquele período que todos precisávamos. Era importante para mim que fosse uma boa experiência para adultos e crianças, tal como num bom filme de Myazaki"..No fim, perguntamos se depois deste estado de graça após Retrato de uma Rapariga em Chamas se já está na fase de dar conselhos. Céline não se sente ainda instituição aos mas admite que aos 43 anos muitos jovens costumam ir ter com ela: "não tenho muitos conselhos a dar a quem está a começar, prefiro sempre perceber qual a dinâmica pessoal que cada um tem para dar. Dou sempre o meu exemplo que passa por respeitar as minhas alianças no começo da carreira. Aliança com o meu produtor, antes de mais nada. Portanto, digo sempre aos jovens para começarem a trabalhar com o pessoal da sua geração, com os seus amigos. Afinal, os jovens têm sempre razão, mas, mais importante, procurar ouvir"..dnot@dn.pt