Houvesse uma certidão de nascimento literária dos Açores e ela teria de ser Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, que, em pleno século XVI, descreve o arquipélago, descoberto mais de um século antes pelos portugueses, como "lustro e fermosura (assim se escrevia então) do mundo todo." Não admira, pois, que para assinalar o seu 500º título, a Letras Lavadas, editora que, como veremos, também é livraria com sede em Ponta Delgada, tenha avançado para uma edição monumental desta obra, até porque, por feliz coincidência, se celebra este ano o quinto centenário da data provável de nascimento de Gaspar Frutuoso..Mas, como o editor e proprietário da Letras Lavadas, Ernesto Rezendes, diz ao DN, esta não é apenas uma edição formalmente mais bonita de Saudades da Terra. "Queríamos comemorar a nossa edição número 500 com um livro especial. Optámos, pois, por publicar as cartas de Gaspar Frutuoso que até agora estavam guardadas na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, mas em acesso reservado, o que dificultava o seu acesso ao público." .Em formato Bíblia, com uma encadernação de luxo, surge, assim, uma obra que, para além do texto de Saudades da Terra em edição fac-similada, reúne uma introdução do investigador Avelino de Freitas Meneses, as palavras dos Presidente da República de Portugal e Cabo Verde e das regiões autónomas de Madeira, Açores e Canárias, a referida correspondência do autor e as poucas folhas conhecidas de Saudades do Céu. Ao todo são mais de 1100 páginas, numa edição limitada de 500 exemplares "todos numerados e certificados página a página por um notário de Ponta Delgada", que pesa mais de 5 kg e custa 225 euros..A importância de Saudades da Terra não se limita, todavia, às nove ilhas dos Açores. Abrange todas as ilhas da Macaronésia, designação de raiz etimológica grega, que lhes foi aplicada pela primeira vez pelo geólogo e botânico inglês Philip Barker-Webb para se referir a uma área biogeográfica, constituída pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde, tendo em conta a riqueza dos seus recursos botânico..É, por isso, que a Letras Lavadas pretende agora fazer lançamentos desta obra em todos estes arquipélagos. "É verdade que todos os historiadores que se debruçam sobre os Açores vão beber ao Gaspar Frutuoso, mas ele é igualmente importante para todos estes arquipélagos", sublinha o editor..Escrita entre 1586 e 1590, a partir da Ribeira Grande, Saudades da Terra é uma obra dividida em seis volumes e constitui um importante repositório de informações sobre Geografia, História, usos e costumes, fauna, flora e até geologia. .O primeiro livro é dedicado a Cabo Verde e Canárias, seguindo-se os da Madeira (livro II), Açores - Santa Maria (III); São Miguel (IV); Poema (V) e Terceira, Faial, Pico, Flores, Graciosa e S. Jorge (Livro VI). Por sua vez, Saudades do Céu é essencialmente uma dissertação filosófico-teológica acerca da vida açoriana na época da crise de sucessão dinástica de 1580, mas dela restam poucas páginas, calculando-se que muitas se tenham perdido ao longo dos séculos..A importância ibérica de Gaspar Frutuoso foi tal que Ernesto Rezendes tem ainda prevista uma sessão de lançamento numa universidade de Madrid: "Ele estudou em Salamanca e manteve toda a vida uma forte ligação com Espanha", justifica. Com efeito, os registos da Universidade demonstram que Frutuoso, com outros alunos de origem açoriana, estiveram ali matriculados, tendo o escritor obtido bacharelato em Artes e Teologia no ano de 1558..Como Gaspar Frutuoso, também a Letras Lavadas faz da Ilha de São Miguel uma porta de entrada para o mundo. Agregada a uma empresa gráfica que se dedicou durante muitos anos a edições turísticas, em 2009 começou, como recorda Ernesto Rezendes, a editar títulos de autores nascidos nos Açores ou que escrevem sobre os Açores. "Em resultado dessa política editorial, já temos edições em parceria com universidades dos Estados Unidos, Canadá e Califórnia". Mas também têm autores publicados no Brasil, Inglaterra, Espanha e França. "O foco está sempre nos conteúdos relacionados com os Açores.".Não obstante, a Madeira é uma presença cada vez mais forte no catálogo, como o demonstra a recente publicação do álbum de Raimundo Quintal, Ilha da Madeira - 300 Árvores. E quem diz a Madeira, diz outras paragens em que não se fala Português, como conta ainda Ernesto Rezendes: "Temos uma série de projetos com autores estrangeiros que escreveram sobre os Açores. O objetivo é mostrar um pouco como nos vê quem nos olha de fora para dentro. Entre muitos exemplos possíveis, posso dizer que vamos ter um livro de fotografia muito diferente do que é habitual". Na "forja" estão ainda dois volumes em que a Letras Lavadas vai reunir todo o trabalho que fez sobre História dos Açores, e que "vai ter cerca de 22 a 24 mil páginas"..Em Ponta Delgada, Letras Lavadas é também nome de livraria desde 2019. Dirigida pela jornalista Patrícia Carreiro, tem também uma "montra" online onde é possível adquirir as obras da editora e não só (www.letraslavadas.pt), numa vasta oferta que vai desde autênticos clássicos da açorianidade, como Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, ou As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, a livros para um público infantojuvenil..Na loja física ainda é possível comprar compotas, geleias e licores - todos produtos regionais, como forma de promover aquilo que é também parte da cultura açoriana, como a pimenta vermelha da terra, abóbora, batata doce ou o mel..Como acontece frequentemente com figuras tão antigas (incluindo Luís de Camões), não se conhece com precisão a data em que nasceu Gaspar Frutuoso, sabendo-se apenas que é natural da então vila de Ponta Delgada e era filho de Frutuoso Dias, mercador e proprietário de terrenos dados de sesmaria, e de sua mulher, Isabel Fernandes..Desde muito jovem interessou-se pela leitura e reflexão, revelando vocação para o estudo, manifestada na aula primária de Gramática Latina, então existente na Ilha de São Miguel. É comum atribuir-se ao Livro V de Saudades da Terra, dotado de um tom aventuroso próprio dos romances de cavalaria (ainda muito em voga no século XVI) um caráter autobiográfico (relacionando-se com as viagens realizadas na juventude pelo autor e seu contemporâneo, o teólogo, Gaspar Gonçalves, mas uma vez mais faltam documentos que sustentem tais cogitações..O que os primeiros registos documentais sobre a sua existência realmente certificam é a matrícula na Universidade de Salamanca em 1548, para estudar Artes e Teologia, sob a orientação do teólogo dominicano Domingo de Soto, confessor do Imperador Carlos V (pai de Filipe II de Espanha, I de Portugal). .De regresso aos Açores, Frutuoso teria sido ordenado presbítero por volta de 1554, aparentemente numa visita a São Miguel, já que o seu registo em Salamanca, para o ano letivo de 1554-1555 dá-o, pela primeira, vez como "presbitero bachiller". Por carta de confirmação de 20 de maio de 1565 foi nomeado vigário e pregador da Matriz de Nossa Senhora da Estrela da então vila da Ribeira Grande, cargo que exerceu durante 26 anos, até à sua morte..Em 1566, após um violento assalto de corsários franceses à cidade do Funchal, realizou um grande peditório a favor dos madeirenses, tendo enviado para lá, a expensas suas, várias sacas de trigo e uma considerável soma de dinheiro..Verdadeiro homem do Renascimento, no sentido em que à erudição literária somava o interesse científico pela observação da paisagem, a sua obra é usada como fonte histórica para os mais diversos temas. Em Ponta Delgada, no Museu Carlos Machado, pode ser vista, até 31 de Março, uma exposição dedicada à sua faceta de naturalista, que está bem documentada em passagens como esta, que dão conta do interesse que lhe suscitava o estudo dos solos, bem particulares, dos Açores..Em causa estava a velha lenda que considerava o arquipélago um resquício da mítica civilização da Atlanta, em cuja existência Frutuoso não acreditava. E explicava porquê, com o espírito crítico dos homens cultos do seu tempo, que só acreditavam no "claramente visto" (como dizia o seu contemporâneo Camões): "Se estas terras eram povoadas de gente, alguma houvera de ficar nestas quando se dividiram e, senão pessoas humanas, ao menos gado, ou lobos, ou feras, ou cobras, lagartos e lagartixas e sapos, ou lebres, coelhos, ou galinhas, ou alguma maneira de caça de outra sorte, como em Portugal há, ou na Atlanta, se tal fora, forçadamente houvera de haver, por onde estas ilhas, pequenos membros tivessem alguma semelhança com os corpos donde (como eles dizem) saíram"..A riqueza documental dos escritos de Gaspar Frutuoso é tal que os seus estudos são usados também na Antropologia Cultural, como o demonstra um estudo recente de Nuno Cameira Serra, e Carolina Vila-Chã, intitulado Atividades lúdicas referenciadas por Gaspar Frutuoso no século XVI, publicado na revista Egitania Sciencia. Para os autores, as descrições de jogo e práticas lúdicas praticados nas ilhas Canárias, Madeira e Açores são de tal maneira pormenorizadas que há que as considerar relevantes para a História do Desporto na Península Ibérica..É caso para dizer que, também para o insular Gaspar Frutuoso, "se mais mundo houvera, lá chegara"..dnot@dn.pt