Uma velha máxima recorda-nos que as fronteiras entre ficção e cinema documental são instáveis. Neste tempo de muitos cruzamentos audiovisuais, cada um dos “géneros” pode até apelar ao outro para consolidar as suas informações, pontos de vista e argumentações. Assim acontecerá, uma vez mais, a partir de amanhã (até dia 26), na edição nº 23 do Doclisboa, uma organização da Apordoc - Associação pelo Documentário, repartida pelas salas da Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal e Cinemateca Portuguesa.No texto de apresentação desta edição, intitulado “Aqui chegados, que fazer?”, Hélder Beja, diretor do festival, resume a angustiante encruzilhada de um projeto com a história e a ambição do Doclisboa: “O cinema não é certamente a solução para a tragédia da guerra, da carnificina, do genocídio de um povo, para a ascensão dos nacionalismos e dos novos fascismos, para a crise ambiental que seca até as ideias.” O que, entenda-se, motiva uma decisão programática: “Mas o cinema é, ou ao menos pode ser, um lugar para pensar o mundo e pensar sobre o mundo – não apenas essa expressão artística de reflexo do real, sempre enganadora, mas uma ferramenta ímpar de indagação e investigação das nossas misérias e dos nossos sonhos e esperanças.”Para lá das habituais zonas competitivas (nacional, internacional e Verdes Anos), justifica-se uma referência muito especial para a consolidação e diversificação da secção Heart Beat cuja vocação inicial — celebrar as relações cinema/música — foi evoluindo para um panorama de múltiplas expressões artísticas. Entre várias propostas portuguesas, haverá, por exemplo, Memórias do Teatro da Cornucópia, com assinatura de Solveig Nordlund. . No plano especificamente musical, dois títulos emergem no espaço Heart Beat: Becoming Madonna, de Michael Ogden (produtor de uma mini-série sobre George Michael), e It’s Never Over, Jeff Buckley, de Amy Berg (autora de Little Girl Blue, sobre Janis Joplin). O primeiro recupera muito material de arquivo para recordar os primeiros tempos de Madonna em Nova Iorque, revisitando a ascensão da Material Girl no período 1978-1992. Quanto ao segundo, revelado em janeiro no Festival de Sundance, surgiu na sequência de um projeto não concretizado: uma biografia de Buckley (1966-1997) protagonizada por Brad Pitt — a opção pela abordagem documental do lendário criador de Grace acabou por ser realizada por Amy Berg, com Brad Pitt na condição de produtor (através da sua empresa Plan B).A retrospetiva desta edição é dedicada a William Greaves (1926-2014) cuja obra cinematográfica corresponde a um testemunho, de uma só vez militante e pedagógico, sobre as condições de vida dos afro-americanos ao longo da história dos EUA. Títulos como Nationtime (1972), sobre a primeira convenção política afro-americana nacional, ou Black Power in America: Myth... or Reality? (1986), este rodado com o apoio do programa Space for Women, da NASA, serão exemplos modelares da sua visão.Copola em documentárioO Riso e a Faca, de Pedro Pinho, premiado em Cannes, destaca-se nas ante-estreias (estará nas salas comerciais a partir de 30 de outubro). Há também vários títulos da última edição do Festival de Veneza, incluindo os novos trabalhos da argentina Lucrecia Martel (Nuestra Tierra) e do alemão Werner Herzog (Ghost Elephants). Seja como for, uma menção especial vai para Megadoc, do inglês Mike Figgis, acompanhando a produção de Megalopolis, de Francis Ford Coppola, um desses projectos que continua a questionar-nos sobre o futuro do próprio cinema.O Doclisboa terá a sua abertura oficial esta quinta-feira, dia 16 de outubro, no Cinema São Jorge (21h00), com With Hasan in Gaza, uma realização de Kamal Aljafari tendo por base três cassetes Mini DV, recentemente recuperadas, documentando a vida em Gaza em 2001. O encerramento oficial será feito com A Árvore do Conhecimento, do americano naturalizado francês Eugène Green, no dia 25 (21h00), na Culturgest.