Numa sala de luxo de um hotel da Lapa, um andar acima do lobby onde se veem passar vários dos convidados do LEFFEST, Thomas Vinterberg recebe-nos de sorriso pronto, com uma simpatia urbana que enche o espaço desafogado. Informalmente, e ainda antes de pôr a conversa a gravar, perguntamos ao realizador oscarizado por Mais Uma Rodada se é a primeira vez que vem a Lisboa. Diz que se trata, na verdade, da sua segunda visita, depois de aos 18 anos ter ficado retido no aeroporto devido a um erro no bilhete de avião que o deixou três dias sem teto, juntamente com um amigo – para sorte de ambos, a cidade era acolhedora e houve quem lhes desse comida e cama. .O que nos leva a Families Like Ours, a série apresentada há dias no festival lisboeta, depois de Veneza, e em estreia hoje no TVCine Edition (22h10), com uma proposta de argumento nada estranha a este estado de deriva num país estrangeiro. A saber, ao longo de sete episódios assistimos a um plano de evacuação total da Dinamarca e realocação financiada pelo governo noutros países da Europa. Porquê? Nesse futuro próximo, dentro de alguns meses a subida do nível das águas apagará do mapa a nação escandinava e tudo o que restará aos seus antigos habitantes é a memória de uma identidade dispersa pelo mundo, com famílias separadas pela circunstância inaudita. É assustador, mas também, por vezes, muito comovente. .Seguimos então os destinos da jovem Laura (Amaryllis August), uma estudante promissora que está a viver a vertigem do primeiro amor, da sua mãe, do pai e da esposa atual, mais o irmão desta e o namorado dele, entre outras personagens que dão uma imagem alargada e diversa das reações humanas a uma crise sem igual num país ultra civilizado. Pela lente de Vinterberg, tudo vem em doses de desespero e amor profundamente entrosados, que fazem a crónica de um recomeço imposto. A viagem é dura e cheia de obstáculos, por vezes tenebrosos, mas nunca acusa coração ausente. .A notável debutante Amaryllis August..É tentador perguntar-lhe se a questão das alterações climáticas estava na génese de Families Like Ours, ou se decorreu de outra ideia. Não estou a dizer que é uma série sobre esse assunto, mas temos aqui um cenário altamente possível, tratado de maneira muito realista, sem a bengala de estilo da ficção científica... Isto das ideias é uma coisa interessante, porque elas surgem quando surgem. São parte de um fenómeno incontrolável, e essa é a sua beleza num mundo que quer controlar tudo. Neste caso, eu estava em Paris a trabalhar num filme – há sete anos, para ser mais preciso –, era um domingo e não conseguia voltar para casa, para a minha família. Tinha saudades deles e senti-me desalojado, dispondo apenas de um quarto de hotel numa cidade estrangeira que não queria nada de mim, e onde era apenas considerado um turista, apesar de ter frequentado o mesmo café durante meio ano. Portanto, acumulei, com este sentimento de não ser bem-vindo, a falta que me fazia o calor da casa, e acho que a partir disso veio a questão do solo: a ideia do que aconteceria se perdêssemos tudo o que amamos e que damos por garantido. O que aconteceria se nos tornássemos nós os refugiados? Desde o início, pensei nisto como uma espécie de pesquisa existencial sobre os seres humanos, mais do que uma ficção de catástrofe. E, definitivamente, não é uma mensagem ambiental, embora houvesse muitas razões para seguir por aí... De qualquer modo, acho que ninguém iria receber essa mensagem. A série foca-se naquilo que somos enquanto seres humanos. Num certo sentido, é um ensaio clínico sobre o que acontece num momento de crise de empatia. Mas o que também aprendi com um professor psicólogo é que, assim que a crise acaba, desaparece tal como apareceu – o que é maravilhoso, porque confirma que nascemos como criaturas gregárias. .Ao ver a série, cheguei a imaginar que, nas mãos de outro realizador e argumentista, esta história, pela sua natureza de “processo”, seria mais kafkiana, burocrática. Isso interessou-lhe menos? Sim, o ponto da minha curiosidade, do meu fascínio é a fragilidade e complexidade humanas. Veja-se, na Dinamarca sempre nos considerámos um coletivo muito solidário – um pouco como aqui, até porque somos uma população semelhante –, mas o que acontece a essa solidariedade quando somos colocados sob pressão? .Recuando um bocadinho aos seus filmes, em quase todos há um certo retrato da coletividade. Recordo A Festa [1998], A Comuna [2016], Mais Uma Rodada [2020], neste caso com um grupo de homens, ou mesmo a comunidade em The Hunt – A Caça [2012]. Como se formou dentro de si a sensibilidade para este olhar específico? Eu cresci numa comuna, como mostra, precisamente, um dos filmes que mencionou, A Comuna. E o curioso dessa experiência é que as pessoas do grupo arriscaram, quebraram todas as regras da vida, mas ao fazê-lo juntos é como se tivessem saltado de um penhasco de mãos dadas – o que criou um sentido de comunhão único, que era magnético, e, sem dúvida, foi marcante para mim enquanto criança. Fiquei desde então fascinado com isso. Trata-se de um elemento de amor; é uma versão do amor, que depois ficou comigo de diversas formas ao longo da minha carreira, à frente e atrás da câmara. Uma sensação comunitária de nos levantarmos juntos. E acho que é o que me define como pessoa também. .Por falar em definição, podemos definir Families Like Ours como a anatomia de uma partida? Absolutamente. Aliás, o “dizer adeus” é mesmo a segunda coisa que sempre me interessou de modo particular, desde os filmes de escola. De uma maneira muito triste, tornou-se parte da minha própria vida. Diria que Families Like Ours é sobre a partida/despedida, na primeira metade, mas na segunda metade debruça-se mais sobre a saudade e a forma como nos redefinimos, ou reinventamos, numa nova realidade. E é importante falar aqui de esperança... A minha mulher, que é pastora protestante (a Dinamarca é um país luterano, por isso há mulheres ordenadas), e também entra na série como atriz (é a esposa de Jacob, o pai da Laura), lembrou-me, ainda na fase inicial do projeto, que era preciso haver esperança. Isto foi um ano depois de eu ter perdido a minha filha [morreu num acidente em 2019, tinha 19 anos]. A Helene [Reingaard Neumann] leu 30 ou 40 páginas do argumento e chorou, porque era tudo muito sombrio – mais do que aquilo que se vê no resultado. Disse-me “Thomas, acho que tens de deixar entrar alguma esperança na tua história, e na tua vida”. Foi então o que tentei, embora não se consiga induzir esperança automaticamente. Isso levou a uma extensão do final: ficamos a ver como estas pessoas vivem, tendo lidado com a mudança. .Um dos casais de Families Like Ours..Como encontram uma nova luz. E como regressam à sua luz própria. .Consegue imaginar-se um ex-dinamarquês? Fez também esse exercício interior? Sem dúvida! Fiz esse exercício ao longo dos últimos cinco anos... Sentir-me-ia vazio, escavado por dentro, como se me tivessem tirado a alma. Penso naqueles milhares de pessoas que estão a passar por isto, noutros termos: é-lhes exigido um esforço gigantesco e uma coragem ainda maior. Mas vale a pena pôr as coisas em perspetiva. Se fosse um miúdo de três anos, responderia à pergunta de maneira diferente... A relação com o teu país muda ao longo das décadas. Quando atravessas as ruas da tua cidade, enquanto criança, estás a experienciar um mundo novo. Continuas a andar nessas ruas enquanto jovem e sentes que já acumulaste experiência: tiveste uma namorada ali, uma festa acolá, etc., mas há uma certa claustrofobia. Ou, pelo menos, foi assim comigo. E depois, a partir dos 40, transforma-se em algo relevante: são essas ruas que têm a tua história, são a razão pela qual estás aqui. Isso relaciona-se com o que senti em Paris. Estava ali a viver um sonho de juventude, que é a possibilidade de viajar com o meu trabalho, mas o lugar não significava nada para mim. As ruas não carregavam a minha história. Por outras palavras, há uma viagem ao longo da vida. .Referiu há pouco que atrás da câmara há um espírito de comunhão semelhante ao que se vê no ecrã. Como é que isso se manifesta no trabalho com os atores? Trabalhar com os atores é uma das partes essenciais, é do que mais aprecio. É onde me sinto confortável e me deixo envolver; esqueço o resto. Aliás, faço questão de escolher pessoas de quem gosto, grandes atores (tenho esse luxo), e esforço-me com eles, ensaiando bastante. A minha filosofia é que temos de criar as bases antes de começar a filmar. Eles têm de conhecer os recantos das personagens para poderem emergir de uma posição sólida e assumir a responsabilidade por essas personagens. Depois, com a câmara ligada, é deixarem-se ir... .Esta é a sua primeira série televisiva. Sentiu diferenças em relação a fazer cinema? Não, nem por isso. Mas há um pequeno aspeto que devo esclarecer: a série, para mim, não era uma condição prévia, em que eu deveria ir à procura de um tema para a servir. É ao contrário. Há uma ideia que não te larga, que te mantém acordado à noite, e a certa altura rendes-te... O formato decide-se em função dela. Agora, sim, foi difícil gerir a duração dos episódios e da própria rodagem, que é algo que nos obriga a entrar numa zona de foco – criativamente, é um bom lugar para se estar.