Dentro, mesmo dentro, da agressão masculina
Há cineastas que nos tiram o tapete, umas vezes acertam em cheio, noutras andam lá perto e, por vezes, seguem pela via do desastre. A carreira de Valerie Donzelli como realizadora é dos fenómenos mais desconcertantes e irregulares do cinema francês. Em 2019 tinha descido fundo na comédia idiota e hedionda que era Notre Dame de Paris, um puzzle desconjuntado sobre um retrato de geração, neste caso, a sua. Antes, bem antes, já tinha tido uma aclamação justa: Declaração de Guerra, de 2011, obra que fintava o “porn cancer” e falava de uma tragédia pessoal com um engenho criativo de bradar aos céus. Agora, quando não se esperava, novo ponto alto: este perturbante Só Nós Dois, drama psicológico sobre o lugar da vítima e do agressor. Uma história de amor que se transforma em história de ódio e de monstros: um casal vai da euforia ao inferno. Ela é Blanche, mulher perto dos 40, habituada a desilusões amorosas mas sempre pronta para amar, ele é Lamoreux, bancário sedutor que a seduz numa festa através de uma boa noite de sexo. Entre eles há uma atração que descamba em romance. Segue-se o casamento e dois filhos quase de rajada. De repente, o marido avisa-a que é transferido para o interior do país e Blanche tem de se afastar da família. Aos poucos, instala-se um clima de terror no lar. Blanche é constantemente vigiada e controlada. Qualquer passo é medido e o comportamento do marido denota uma tendência de abuso crescente. Lamoreux revela uma tendência de posse abusiva e os ciúmes sem razão fazem com que Blanche sonhe em libertar-se. A certa altura, percebe que está numa prisão doméstica: sem vida própria e consumida pela repressão conjugal.
Em outras mãos, um caso de denúncia de abuso psicológico masculino poderia quedar-se no mero panfleto de relevo #MeToo ou num “caso de vida” à telefilme. Com Donzelli há uma vontade de experimentar registos opostos. Veja-se a maneira como encena a fase de encantamento romântico: o tom propõe ir do musical ao engenho mais artificial de como podemos entregar de forma total o nosso coração. Depois, nos momentos mais tensos sugere ambientes de thriller psicológico: a sensação desta mulher presa dentro de sua casa passa realmente. Uma mise-en-scéne capaz de ir do micro ao macro, do pormenor ao ênfase de olhar de frente para um flagelo cada vez mais presente: a violência psicológica (e física) sobre as mulheres. E é aí que L'Amour et Les Fôrets sai das convenções e eleva-se perante a validade da sua mensagem. Importa frisar: é um filme com cinema.
Parte da intensidade deste drama é realçada por uma simbiose feliz entre o par de atores. Uma Virginie Efira de entrega total e um Melvil Poupaud no topo de forma a seduzir e a assustar no mesmo momento. Atores que dão tudo numa imersão realista, seja em cenas de abuso e toxicidade, seja no apelo sexual do início da relação: as cenas de sexo são particularmente bem coreografadas. No caso de Efira há ainda um trunfo extra: ela é realmente prodigiosa num outro papel, a da irmã gémea que percebe o flagelo da situação. Cada vez mais, o cinema francês já não passa sem o seu talento.