Dizia Natália Correia que "Somos Todos Hispanos", desconcertando quem, destas coisas de nacionalismos, faz leituras lineares. Somo-lo, antes de mais por essa condição, tão irreversível como a genética, que é a geografia. Hispânia, recorde-se, foi o nome dado pelos antigos romanos a toda a Península Ibérica. Como boa parte da cultura e da língua latinas, esta designação manteve-se nos círculos cultos durante a Idade Média. João XXI, o único Papa de nacionalidade portuguesa passou à História como Pedro Hispano. No século XIII, embora já estivessem delineadas as fronteiras do reino de Portugal, ninguém, nem mesmo o próprio, sentiu que fosse uma designação abusiva. Até porque a Espanha, com um "formato" próximo do que lhe conhecemos, data apenas de 1492, quando os Reis Católicos conquistaram o reino muçulmano de Granada..Em dia de celebrar a restauração da independência, vem este intróito a propósito da nova exposição do Museu Nacional de Arte Antiga, Identidades Partilhadas, que abre hoje ao público e pode ser vista até 30 de Março. Em foco está o tema, até aqui pouco tratado, da presença da pintura espanhola em Portugal como consequência das fortes relações culturais que existiram entre os dois países (sobretudo entre séculos XV a XVII, antes, durante e depois da União Ibérica), concretizada através do colecionismo, de ofertas diplomáticas ou de patrocínio eclesiástico ou mesmo real. Um intercâmbio de tal maneira forte que um dos comissários desta exposição, Benito Navarrete, professor catedrático da Universidade Complutense, fala da existência de um "cânone ibérico", para cujo esplendor contribuíram artistas representados nesta mostra como El Greco, Francisco Zurbarán, Josefa de Óbidos ou Diego Velásquez, ele próprio descendente de portugueses..Sabíamos que até ao princípio do século XVIII, muitos dos nossos poetas, escritores e filósofos escreviam com igual correção (e inspiração) em português e castelhano. Gil Vicente era bilingue, Camões também, D. Francisco Manuel de Melo, nascido em plena União Ibérica, movia-se com igual à-vontade em Lisboa e em Madrid. Apadrinhado pelo poeta Francisco de Quevedo, os seus escritos faziam igual furor em ambas as cidades. Miguel de Cervantes, embora não tenha escrito em português, deu várias vezes mostras de conhecer os escritores portugueses, nomeadamente Luís de Camões, a quem dedicou páginas cheias de veneração..Ficamos agora a saber que nas artes plásticas a relação foi igualmente fecunda e prolongada no tempo, por vezes favorecida por membros da realeza como a cultíssima Catarina de Áustria, rainha de Portugal por casamento com D.João III, ou a sua nora e sobrinha, Joana, mãe de D.Sebastião, também ela uma mulher de muita instrução. O acervo do Mosteiro das Descalzas Reales, em Madrid, por si fundado, dá conta da vocação mecenática que também animava a princesa viúva de Portugal, irmã de Filipe II..Identidades Partilhadas tem, por isso, o valor de uma revelação. Antes de mais pelo quase milagre que foi a sua concretização, já que decorre de uma importante campanha de restauro e investigação realizada apenas num ano, financiada pela Fundación La Caixa e pelo BPI. Mas também pela novidade e riqueza do seu conteúdo. Como frisa Joaquim de Oliveira Caetano, comissário português da exposição e diretor do MNAA, "não existia sequer um artigo científico sobre a presença da arte espanhola em Portugal." Houve, pois, que partir do zero quando os dois países começaram a trabalhar em novembro do ano passado, neste projeto..Ao todo, são 82 obras, oriundas de igrejas, museus e fundações, correspondendo a duas situações distintas: artistas espanhóis que, de forma transitória ou definitiva, se fixaram em Portugal, e artistas portugueses que fizeram idêntico movimento em sentido oposto. Neste caso, Joaquim Caetano destaca, por exemplo, o caso de Vasco Pereira Lusitano (com quatro obras na mostra) que vai fixar-se em Sevilha e trabalhar para todo o espaço hispânico, incluindo as possessões da Coroa espanhola na América Latina. O diretor do MNAA refere ainda a importância das encomendas feitas por igrejas portuguesas a artistas espanhóis, sobretudo durante a União Ibérica, como atestam os painéis de O Apostolado, de Francisco de Zurbarán, na Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa (ela própria mandada construir por Filipe de Espanha, I de Portugal)..Benito Navarrete destacou as novidades apresentadas nesta exposição graças à pesquisa desenvolvida por investigadores dos dois países, como os retratos à moda espanhola encomendados por grandes famílias portuguesas na primeira metade do século XVII ou ainda um retrato de um cavaleiro português da Ordem de Calatrava assinado por um nome grande como Juan Pantoja de la Cruz. "É um trabalho de grande qualidade, ao nível das obras mais conhecidas do artista, como as que estão no Museu do Prado." Por causa destes laços, que a exposição torna evidentes, Benito Navarrete reivindica o novo conceito de "cânone ibérico"..Em destaque está também Bartolomeo Carducho (corruptela espanhola do apelido italiano Carducci), artista italiano que juntamente com os irmãos se instalou na Península Ibérica para trabalhar na construção do Escorial e do qual podemos ver um notável Passamento de São Francisco. Mas uma das novidades mais empolgantes desta exposição é, sem dúvida, um São Sebastião, que até aqui fora atribuído a Clemente Sánchez, e que as investigações mais recentes em torno do estilo e do tratamento de cor e luz demonstraram ser, afinal, da autoria de Francisco de Zurbarán. "É uma das obras mais importantes da pintura espanhola", não hesita em afirmar Benito Navarrete..Nesta incursão ibérica, importa não sair do Museu sem visitar a obra convidada, também ela espanhola: Trata-se do Bom Pastor, de Bartolomé Esteban Murillo, proveniente do Museu do Prado. Companheiro de geração de Velásquez e Zurbarán, Murillo foi o fundador da Academia de Desenho de Sevilha e era frequentemente requisitado pelo monarca e pela alta nobreza. A sua reputação era tal que, ao morrer, o seu caixão foi carregado por quatro cavaleiros e dois marqueses. Por uma vez, a arte teve precedência sobre os privilégios de nascimento..dnot@dn.pt