O rosto de Penélope Cruz será o primeiro a ocupar o grande ecrã do Cinema São Jorge esta noite, na sessão de abertura com o filme L"Immensità - Por Amor, de Emanuele Crialese. A Festa do Cinema Italiano começa, assim, sob o signo de uma das grandes atrizes do cinema europeu, que aqui interpreta uma mãe em vertigem interior na Roma dos anos 1970. Crialese filma-a com uma espécie de devoção pela sua luminosidade maternal: Cruz veste a pele de uma mulher que se sente desligada da realidade dos adultos, e dos tradicionais modelos familiares, encontrando na relação com os três filhos menores um refúgio, um espaço de liberdade e um modo de ver o mundo que, do alto da sua solidão, lhe permite ser sensível à natureza da filha pré-adolescente, que se identifica como rapaz. É um retrato de época feito através das linhas mais íntimas, e será tema de conversa com o realizador, presente na sessão..A Festa arranca em Lisboa, onde fica até dia 6 de abril - entre as salas do São Jorge, UCI El Corte Inglés e Cinemateca -, chegando depois a mais de 20 cidades portuguesas, com uma programação que, nas palavras do diretor artístico Stefano Savio, procura concentrar "as riquezas culturais e artísticas do presente e do passado que esta terra [Itália] conserva em grande quantidade e variedade.".Por falar em riquezas culturais, não é por acaso que o encerramento se faz com A Estranha Comédia da Vida, de Roberto Andò, um filme que nos dá Toni Servillo no papel de Luigi Pirandello, o ilustre dramaturgo apanhado numa crise criativa, que reencontra a inspiração durante uma estadia na Sicília em 1920. Os responsáveis por esse desbloqueio mental são dois cangalheiros sicilianos (interpretados pela dupla de comediantes Salvatore Ficarra e Valentino Picone), que nos tempos livres se dedicam a uma companhia de teatro amador... Entre a comédia e uns pozinhos de drama, Andò tece uma fantasia rica e hábil sobre o vínculo que une o palco, a vida e a morte, ao mesmo tempo que narra a origem da peça mais conhecida de Pirandello, Seis Personagens à Procura de Um Autor. No seu centro, um melancólico Servillo dá corpo e alma a esse mestre perdido no próprio universo criativo - o ator de A Grande Beleza estará em Lisboa para uma conversa após a sessão e, antes disso, no Teatro Maria Matos (dia 4), onde apresenta o espetáculo As Vozes de Dante..Nas antestreias, saltam também à vista As Oito Montanhas, de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, história de uma amizade nos Alpes italianos (Prémio do Júri no Festival de Cannes), Velas Escarlates, o novo filme de Pietro Marcello, que é a sua primeira obra em língua francesa, com Louis Garrel no elenco, e Seca, de Paolo Virzì, outro habitué da Festa, que depois da comédia crepuscular Noites Mágicas volta a construir um argumento robusto e repleto de personagens. O título aponta para um cenário quase apocalíptico: Roma está a lidar com uma crise hídrica (não chove há 3 anos) e os efeitos dessa seca refletem-se em várias situações e frentes narrativas, com as ditas personagens a surgirem aos poucos como figuras de um coro dramático que se interliga num desenho perfeito de relações. É daqueles filmes de cariz popular, mas com inteligência de escrita, que já poucos sabem fazer..Este ano, porém, pode dizer-se que o forte da programação da Festa do Cinema Italiano está nos documentários. Para além de Marcha Sobre Roma, do sempre fundamental Mark Cousins (ver texto ao lado), temos, desde logo, Sergio Leone - L'Italiano che Inventò L'America, de Francesco Zippel, o realizador de Friedkin Uncut, que aqui se debruça sobre o legado de um dos mais influentes realizadores italianos, contando com as palavras entusiastas e conhecedoras de um conjunto de entrevistados que examina a obra de Leone da teoria à prática, com algumas memórias pessoais pelo meio, excertos de arquivo e, claro, vários momentos icónicos da sua filmografia. Um puro deleite cinéfilo na companhia, então, de Quentin Tarantino, Clint Eastwood, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Dario Argento, Robert De Niro, etc., que permite a leitura viva de um autor absolutamente moderno e apaixonado por Hollywood, onde se inspirou para renovar toda uma linguagem visual e sonora. Francesco Zippel junta-se à lista de convidados da Festa..Entre outros destaques documentais, encontramos ainda Laggiù Qualcuno Mi Ama, de Mario Martone, e Umberto Eco - La Biblioteca del Mondo, de Davide Ferrario. O primeiro é uma bela deambulação pela memória de Massimo Troisi (1953-1994), o ator napolitano que Martone escolheu abordar pela dimensão autoral, isto é, enquanto realizador (assinou seis filmes) e enquanto personalidade que revolucionou a comédia feita em Nápoles, com traços de um certo cinema francês e um discurso amoroso que o isolaram num inconfundível registo filosófico. Trata-se sobretudo de uma homenagem em forma de pesquisa pessoal - Martone faz a narração em off e aparece como entrevistador -, que tenta dar o mais completo retrato daquele que o grande público conhece como protagonista de O Carteiro de Pablo Neruda (1994), de Michael Radford, precisamente o seu derradeiro filme. A propósito, vai ser possível revisitar este clássico italiano na secção Amarcord..Já Umberto Eco - La Biblioteca del Mondo, de cariz um pouco mais televisivo, é um olhar que mergulha na imensidão das estantes de literatura coligida pelo grande intelectual italiano, ao mesmo tempo que "coleciona" as suas intervenções públicas e entrevistas, quais excertos iluminados pelo pensamento e sabedoria, que tocam uma série de questões, desde a memória (individual e universal) à internet, passando pelo amor aos livros, objetos insubstituíveis, e pela própria ideia de biblioteca enquanto coisa viva. No fundo, trata-se de uma "biografia bibliófila" que alarga a consciência de quem era o autor de O Nome da Rosa..Numa 16.ª edição que inclui um programa especial do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa (a decorrer na Sala 2 do Cinema São Jorge), uma exposição centrada no trabalho do fotógrafo Luigi Ghirri (patente no Museu CCB), festas, stand-up comedy, uma rota de 30 restaurantes e o famoso cine-jantar (este ano dedicado à "mulher mais bela do mundo", Gina Lollobrigida, a atriz falecida em janeiro), a Festa do Cinema Italiano apresenta também uma retrospetiva integral da obra de Elio Petri (1929-1982), cineasta de índole política, injustamente esquecido, apesar da autoria de um filme oscarizado: Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970). Num tempo de muitas crises ideológicas, importa (re)descobri-lo, na Cinemateca..dnot@dn.pt