De bestas e humanos

Entre o belo e o horroroso, <em>Cordeiro</em>, de Valdimar Jóhannsson, é uma das coqueluches do cinema fantástico europeu dos últimos tempos. Depois de Cannes e do FEST, chega às salas portuguesas com muita aclamação, toda justa. Um dos primeiros grandes acontecimentos do ano.
Publicado a
Atualizado a

Depois de Na Fronteira, do sueco Ali Abbasi, outro objeto não identificado vindo do norte da Europa. Uma fantasia sobrenatural a recuperar um imaginário "folk" das lendas islandesas. Na prática, o que está em causa é aliar essa impressão de "conto" nórdico a um ideal de melodrama sobre novas famílias. Cordeiro, entre-se ou não na sua proposta de demência, cria um "mood", uma atmosfera em que se sinaliza numa fusão entre natureza e o humano por intermédio de uma tensão própria de um "body horror" que manda às urtigas procedimentos do real.

Um casal de agricultores e pastores numa montanha isolada na Islândia parece viver uma existência pacífica. María e Ingvar coexistem perfeitamente numa rotina simples e sem grandes diálogos. Num belo dia, descobrem que um dos cordeiros nasce com uma fisionomia diferente: metade cordeiro, metade menino. A partir daí, tornam-se pais sem suspeitarem que o reino animal pode não ficar indiferente. Para piorar mais as coisas, do nada surge Peter, irmão rocker de Ingvar, alguém que se espanta naturalmente com esta nova família. Peter traz também segredos de um passado "rock n"roll"...

Para além do atavismo inerente à proposta, este conto de pertença de corpos parece brincar com noções de teoria da evolução num contexto de uma radical fronteira do absurdo. Um nonsense capaz de criar humor escuríssimo (muitas vezes bem mais do que negro...) mas também uma tensão nova, fica-se sempre num limbo de perplexidade, algures entre o pesadelo de meia-noite chique e excêntrico e uma história de amor bizarra. Ou seja, da comédia macabra sai um delírio inclassificável, próximo de uma afronta à própria noção de fábula adulta e onde o tratamento do "mal" surge sempre com uma pressão adicional. E desse choque surpresa surge precisamente a força deste conceito desconcertante. Nesse sentido, Lamb tem essa força selvagem, esse gesto de animalidade que tanto é romantizado como perigoso. Daí o impacto brutal da sugestão da temática do sacrifício natural, quase que em jeito de lição de terror ambiental, embora Valdimar Jóhannsson não pareça interessado na mera gestão do "ecohorror" da moda, na verdade, muitas vezes até parece mais interessado em exercitar uma coerência de humor controlado e disciplinado.

Muito explicitamente, estamos na presença de um objeto cuja capacidade de se tornar lugar de transferências de mutação de corpos e de sinais torna-se numa verdadeira experiência de cinema dos sentidos. A dada altura, o espectador, mesmo sem estar em zona de risco, entra numa sofisticada envolvência de provocações morais, sempre para além da fácil cilada da metáfora da nossa animalidade. É desse simbolismo básico que o filme foge a sete pés.

Estreia de Valdimar Jóhannsson, Lamb recebeu em Cannes o prémio de originalidade do júri do Un Certain Regard e, em Portugal, teve antestreia na última edição do FEST, em Espinho. Destinado a criar clivagens, Cordeiro é aquilo que pode ser ainda descrito como um verdadeiro filme de culto ou receber a famosa designação de "nunca dantes visto". Como se o seu surrealismo fosse parte estruturante do seu programa e não um mero acessório ou "gimmick". Afinal, a verdade sobre esta fábula é podermos escolher na diferença de um corpo algo que nos afronta ou que nos congela com a sua beleza. Ou vamos para o abalo do medo que este conto à irmãos Grimm propõe ou, por outro lado, viajamos pela complexidade de uma mensagem que expande os limites da parentalidade sufocante. De um paraíso idílico para o tal pesadelo de metáforas vai um passo, mas a maneira como o realizador interliga a beleza da paisagem islandesa com os ambientes zen da fábula é um trunfo inato, sobretudo sublinhado pelo rigor e placidez de Noomi Rapace (Sherlock Holmes- Jogo de Sombras, de Guy Ritchie, Prometheus, de Ridley Scott), atriz sueca que encarna com classe a protagonista. É através do mapa do seu rosto que somos puxados para aquele apelo maternal.

Num filme que não procura "fazer sentido" esse é porventura o predicado mais humano, o toque indelével que contrapõe a sombra da barbaridade humana que nos consome. E da fábula rompe um peso filosofal que perdura... Se vai ficar apenas na caixinha dos filmes insólitos que não encontra público, é outra questão, sobretudo numa altura em que na ressaca da pandemia as salas ainda não encontramos público português em número decente. Em abono da verdade, cada vez são mais confrangedores os números de espectadores dos filmes mais alternativos como este. Dir-se-ia que estes não são tempos para filmes de culto. À exceção de A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier, outro filme de Cannes da mesma colheita, parece que já ninguém liga ao cinema de culto. Lamb/Cordeiro está nesta encruzilhada e arrisca-se a ser vítima deste número excessivo de estreias e da forma invisível como estes filmes são lançados. Ainda para mais sem trunfos de nomeação ao Óscar ou coisa do género. Este bebé da montanha islandesa é criatura secreta com certeza...

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt