Da dúvida e da fé: Ralph Fiennes à procura de um Papa

Em pouco mais de uma década, surgiram pelo menos três filmes relevantes em torno de Papas e do funcionamento interno do Vaticano: Habemus Papam - Temos Papa (2011), de Nanni Moretti, belíssimo estudo da ansiedade de um Sumo Pontífice (Michel Piccoli) acabado de ser eleito pelo Colégio dos Cardeais; Dois Papas (2019), de Fernando Meirelles, simpático retrato de uma possível relação amistosa entre o conservador Bento XVI (Anthony Hopkins) e o futuro Papa Francisco (Jonathan Pryce), da ala mais liberal, e, estreado este ano nas nossas salas, O Rapto, de Marco Bellocchio, pungente olhar sobre o caso histórico de uma criança judia retirada à família por ordem do Papa Pio IX, que oferece também uma janela para a lógica de poder que durante muito tempo revestiu o chefe supremo da Igreja Católica..A este conjunto de dramas e comédias junta-se agora o exemplar thriller de Edward Berger Conclave, que transforma os bastidores do Vaticano numa sinuosa intriga eleitoral, sem se deixar consumir totalmente pelas regras de um género cinematográfico. Ou seja: sim, há um apelo natural no thriller de conspiração - quando competente e eficaz - que, por si só, torna o filme de Berger apto a preencher os requisitos de um “visionamento satisfatório”, para o dizer de maneira muito prática e desapaixonada, mas o que se distingue no gesto do realizador é outra coisa. A saber, a humanidade, vista através dos seus impulsos mais feios ou mais nobres, está aqui representada nas nuances comportamentais dos elementos do Colégio Cardinalício, como prova de que a igreja são os homens, corpos políticos, e não há santidade que lhes valha. Como a certa altura se dirá em sabedoria, abençoados sejam os que ousam conviver com a dúvida....Adaptação de um romance do prolífico autor Robert Harris, que se revela espantosamente adequado à suavidade firme deste cineasta alemão (recorde-se que Berger assinou antes o drama de guerra A Oeste Nada de Novo), Conclave observa, com uma elegância engenhosa e grave, os procedimentos que envolvem a eleição de um novo Papa. Mas, mais do que chegar à resposta de quem será o escolhido, é na relação entre clausura e necessidade de ar fresco (literal e metaforicamente falando), entre ambição e jogadas conscienciosas, que sobressaem impecáveis interpretações, como as de Stanley Tucci, John Lithgow e Isabella Rossellini, dois cardeais e uma freira... à espera do seu momento. No fundo, personagens fechadas num sistema de conversas cruzadas, desconfianças e meias-palavras, onde Ralph Fiennes, na pele de Lawrence, o cardeal encarregue de liderar o processo, aparece com o semblante justo de uma oração secreta..Ralph Fiennes: um Óscar à espreita?.Desde o arqueólogo amador de A Grande Escavação até à personificação do escritor Roald Dahl no mais recente quarteto de curtas-metragens de Wes Anderson, passando pelo chef diabólico de O Menu, Fiennes tem tido uma década de 2020 recheada de papéis cujo comedimento da pose esconde um mar de emoções; uns mais incisivos, outros mais reverberantes. E essa será também uma das forças do seu cardeal Lawrence, figura que atravessa corredores e portas com o controlo frágil mas persistente de uma postura íntegra, apesar de carregar dentro de si um fardo insuportável de responsabilidade e incerteza. Assim opera, de resto, o filme de Berger: sem desperdiçar qualquer detalhe da beleza protocolar do conclave e das movimentações destes homens de vestes vermelhas que se prestam à pompa visual, o realizador burila na face interior deste mundo de aparências uma inquietação profundamente humana..Modelo superlativo dessa inquietação, Ralph Fiennes, que acumula no currículo duas nomeações para Óscar, ambas dos anos 90 (a primeira como ator secundário em A Lista de Schindler, a outra como melhor ator em O Paciente Inglês), poderá estar de novo na corrida.

Da dúvida e da fé: Ralph Fiennes à procura de um Papa

Artigos Relacionados