Criolo: “Espero que um dia imigrante seja apenas o adjetivo de alguém de outro território, não alguém menor”
Nascido Kleber Cavalcante Gomes, foi através do seu nome artístico Criolo que se tornou um dos nomes mais respeitados da música brasileira neste século. Filho do rap, posteriormente ganhou destaque internacional com um som que cruza géneros, fronteiras e vivências. Agora, em 2025, celebra meio século de vida com uma tournée por Portugal, país com o qual tem estreitado relações nos últimos anos.
O primeiro concerto é já nesta sexta-feira (30), no Festival Aqui e Acolá (Ponta do Sol, Madeira), seguido de apresentações no Festival do Maio (Seixal), no dia 31 de maio, no Festival Coala (Cascais), a 1 de junho, na Casa da Música (Porto), a 4 de junho, e no Encontro de Culturas (Serpa), no dia 6 de junho.
Em entrevista ao Diário de Notícias, o sempre ‘engajado’ artista, que já fez colaborações com nomes como Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Gal Costa, Dino D’Santiago e Mayra Andrade, fala sobre a sua relação com Portugal, a importância das conexões lusófonas e o estado do mundo, no qual completa 50 anos de existência. Além, claro, do que deseja para os próximos 50.
Quais as suas primeiras memórias de Portugal? Quando veio cá pela primeira vez?
Foi em 2013. Desde então, tive a oportunidade de me apresentar em lugares muito diferentes, da Festa do Avante! ao Super Bock Super Rock. A gente estava vivendo tudo, todos os extremos. Lembro também do Festival Mimo, em Amarante, que foi uma experiência brutal. Mais tarde estive em Cascais e noutras cidades. Foi assim que começámos essa relação.
Portugal consome muita música brasileira. E o contrário? Quando começou a conhecer artistas portugueses?
Em 1981 os Trapalhões [grupo brasileiro] tinham um circo que visitava as cidades, e nessa época eu morava na Favela das Imbuias, na Vila São José, extremo sul de São Paulo, e tinha um descampado, que ia ter uma apresentação do Circo dos Trapalhões. Quando você chegava lá, além de ter as apresentações circenses, tradicionais, tinha um pouco de concerto, tinha alguém da televisão que se destacava, e eu vi a apresentação do Roberto Leal. Então a primeira referência de artistas portugueses que eu tenho é do Roberto Leal, não dá para inventar qualquer outra história.
E depois?
Depois tem o fado, mas também por muito tempo não sabia o nome de quem cantava o fado, era mais algo como “olha, aquela é a música tradicional de tal país”, mas sabemos que não é apenas o fado. É como dizer que a única música brasileira é o samba. Esses estereótipos ajudam a divulgar a cultura de um país, mas também acabam por invisibilizar outras vozes. E só depois de muito tempo é que o rap me apresenta os MC, de Portugal, que têm algo muito interessante, porque também já trazem em si toda uma história de outros territórios: o Valete, por exemplo. Depois, também através de um disco do Sir Scratch, conheci outros como Sam The Kid, Bomberjack.
No ano passado fez uma colaboração com Dino D’Santiago. Como surgiu essa conexão?
Antes de gravar com o Dino, já havia gravado também com a Márcia - a nossa música chama-se Linha de Ferro. Depois também conheci a Ana Moura num Festival de Fado, estou para conhecer a Garota Não. E o Dino entrou de uma forma muito linda, com uma história que ele me contou do impacto do Nó na Orelha (disco de 2011) na vida dele e, depois disso, eu fiz um convite para ele cantar um samba comigo. Acabou que, no meio desse processo, no qual ele participou de forma muito gentil, ainda nasceu um rap: a música Esperança, com o piano maravilhoso do Amaro Freitas. É a música que escolhe, não a gente.
Também colaborou com Mayra Andrade, de Cabo Verde. A língua portuguesa une todos esses encontros?
Sem dúvida. Mas essas parcerias vêm de algo muito afetivo. Ogum Ogum pediu a voz da Mayra. Eu senti a música e lembrei-me dela, da voz dela, e convidei-a. Às vezes, como no caso da Esperança, é a música que chama. Pelo menos quando a gente não a vê como um produto - e tudo bem quem vê, não tem certo ou errado. Mas quando você faz sem pensar como um produto, é só ela que manda, e esses encontros não acontecem a toda hora. Levei 35 anos no rap e 50 de vida para viver isso de maneira genuína. Hoje há mais oportunidades, sim, fui muito bem acolhido noutras expressões de música que o Brasil tem, e fora também, mas essas conexões verdadeiras ainda são raras. Não é só mandar um e-mail e pedir um feat. É diferente ouvir a voz de alguém, a história de alguém, e sentir que faz sentido estar junto.
E por falar em história, como vê o papel da língua, em si, nessas trocas culturais, especialmente entre países lusófonos?
Quando a gente fala da língua, a gente fala da história. Quando eu sei um pouco da história, eu sei um pouco da origem. Quando eu sei um pouco da origem, eu sei um pouco da raiz. Recentemente estive num evento no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, na presença da ilustríssima ministra da Cultura do Brasil e da ilustríssima ministra da Cultura de Portugal. Era um evento exatamente sobre isso, a celebração da língua, a importância das aproximações, e aproveitei para fazer uma provocação: e se Portugal tivesse outro nome? Qual seria o nome da nossa língua? E se vocês não tivessem chegado ao nosso território, que nome teria a minha língua? Então é importante que a gente se encontre, porque é nessas subtilezas que nós vamos perceber as visitas, as não-visitas, as celebrações e as invisibilidades no decorrer do processo de vida das gerações dos nossos países ao longo da história. Acredito que toda a expressão de arte seja extremamente válida para criar esse ambiente fértil e acolhedor para conversarmos sobre isso, mas a música escancara tudo: não tem como parar a música. Você ouve mesmo sem querer. E se a música chega de modo natural, é porque as reflexões já estão acontecendo.
Sobre a digressão: no ano passado esgotou dois concertos no Musicbox e ainda fez uma apresentação na Praça do Município. Este ano é uma tournée mais longa. A tendência é ver o Criolo cada vez mais no país? Sente que o seu nome está a crescer entre o público português?
O desejo é de estar todos os anos em Portugal. Não só uma vez, mas duas, três vezes, o quanto for possível. Mas é difícil circular até no nosso próprio território, quanto mais atravessar o oceano. Mas tem sido um prazer e uma felicidade muito grande estar aí. As pessoas têm-me acolhido muito bem desde 2013. Tenho um respeito enorme pela comunidade da música e do rap em Portugal. Por vezes, quando vamos, temos o desejo de mostrar tudo que estamos construindo, mas muitas vezes não dá. Aí viaja com metade da banda, ou tenta encontrar caminhos tecnológicos. Mas nada consegue estar no lugar dos músicos.
Este ano estou conseguindo trazer mais músicos do que no ano passado no Musicbox, portanto, já é um avanço e estou contente. E desejoso de estar aí cada vez mais e mais, de conhecer outros artistas. Tem muita gente de outros países também em Portugal, artistas interessantíssimos que tenho vontade de conhecer. Daí também a importância de tocar em festivais: eles dão a oportunidade de conhecer muita coisa, até o que você nem sabia que ia gostar - porque nem sabia que existia. Acho sempre uma experiência única.
Disse que são 35 anos dedicados ao rap, mas sua carreira nos últimos 15 está muito ligada a outros géneros (MPB, samba). Qual o repertório preparado para a tournée em Portugal?
Uma mescla total. Tem música de 1998, de 2002, até as mais recentes. Vamos misturar tudo.
Um dos palcos desta tournée é o Festival do Maio, no Seixal - um evento com histórico de engajamento político, organizado pela câmara local, tradicionalmente à esquerda. Em contraste, vemos hoje um avanço da extrema-direita naquela mesma região, assim como em Portugal e na Europa como um todo. Como olha para este momento político global e o papel da arte neste cenário?
O Festival do Maio é extremamente relevante e necessário. Agora, o que está acontecendo em Portugal, o avanço da extrema-direita, não é novidade para a gente no Brasil. É uma questão do planeta também. Mas acho que, antes de falar do que está acontecendo agora, temos que falar como isso se construiu nos últimos 50 anos. Não tem como você plantar uma margarida e nascer rosa. A gente constrói e desconstrói pensamentos para chegar num mundo contemporâneo onde cada um vai usufruir da árvore que regou. E neste momento vivemos num mundo onde a gente tem que ter a resposta exata agora, nesse segundo, que quer as soluções para os problemas agora -por mais que isso destrua caminhos para problemas de outras pessoas e talvez problemas até mais graves.
Acho que o que o planeta está vivendo é uma resposta de algo que já foi planeado, pensado, fomentado e organizado por pelo menos 50 anos. Recebemos herança em vida. Quando criamos ambientes de total exclusão, nos quais as minorias devem ser esmagadas, a educação não é levada como prioridade e a cultura é completamente dilacerada, você está apagando a história de um povo. Uma história de construção, reconstrução, pavimentação nacional dos direitos civis, do básico para que as pessoas vivam em comunidade e em dignidade. Neste sentido, o Festival do Maio torna-se ainda mais importante.
A tournée celebra seus 50 anos de vida. O que quer para os próximos 50?
Celebrar 50 anos é o que eu desejo para todos os jovens. Não é fácil chegar aos 50 anos. Tudo depende do ponto de partida de cada um. Como é o meu ponto de partida no Brasil, como é o meu ponto de partida naquele barraco, naquela favela que eu nasci. Antes desta entrevista, fui visitar um amigo chamado Gustavo, que acabou de ser pai. Fiquei muito emocionado, porque ele morava na minha rua. Lembrei-me da época que víamos, aquele garotinho andando de bicicleta para lá e para cá, e ficava pensando: “O que vai ser o futuro dessas nossas crianças aqui na rua? Vai ser bala perdida? Vai ser subemprego?” Porque é difícil enxergar um horizonte diferente, sendo que você não sabe que tem coisa boa no mundo. Quando a gente não sabe que algo bom existe, é difícil sonhar com algo bom. E quando a gente sabe que existe, a gente quer tudo e quer de uma vez e agora. Então, também vivemos em extremos, cada um vive os seus extremos. Agora, como equaciona mos isso sem machucar o outro, só o tempo o vai mostrar.
O que eu quero é que celebremos a nossa vida, a nossa saúde, e que possamos dar a nossa contribuição para um mundo melhor, menos desigual. Por exemplo, um mundo onde o termo imigrante seja, em algum momento, adjetivo apenas de alguém que vem de outro território. Não alguém menor.
nuno.tibirica@dn.pt