Criolo: "A arte é fundamental para o ser humano"

Um dos mais aclamados rappers brasileiros, Criolo está de regresso a Portugal, para um espetáculo em nome próprio em Lisboa e outro em Évora, integrado no festival Urban Village.
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Rapper, cantor, compositor, professor, ator... Em Criolo a arte confunde-se nas suas mais variadas vertentes, mas é no rap, que continua a sentir-se em casa, apesar de o ter ampliado muito além das fronteiras da comunidade hip-hop, através do modo como o fundiu com a MPB. Aos 44 anos e já com cinco discos editados, é um caso raro de consenso e transversalidade na música brasileira, materializado em prémios, elogios de gente como Chico Buarque ou Caetano Veloso (com quem já gravou um dueto), mas especialmente pela devoção do público, que tanto lá como cá, deste lado do Atlântico, continua a encher os seus espetáculos, como aconteceu em julho, em Amarante, onde foi o protagonista de um dos melhores momentos do festival Mimo. Paulistano, nascido no bairro de Santo Amaro e criado no Grajaú, Kleber Gomes, ou antes Criolo, tinha apenas 11 anos quando escreveu as primeiras rimas. Desde então não mais parou. "Penso, vivo e respiro música no meu dia-a-dia", confessa nesta entrevista ao DN, antes de mais uma visita a Portugal.

Considera que a música que faz ainda é Rap ou esse rótulo já não faz mais sentido, pelo modo como mistura tantos estilos musicais nas suas canções?

Acima de tudo faço rap, sim, é o que mais faço, mas faço outras coisas também, que são uma influência musical da minha família, do meu bairro e da minha história. Faço um tanto de cada coisa e o rap está sempre presente.

O que é o que o inspira quando escreve?

Tudo aquilo que me emociona me leva a um canto e em frações de segundos, desse canto nasce o início de algo. De pensamentos ou de ideias, mas sempre movidos pela emoção e pelo sentimento. É assim uma mistura de tantas energias, essas tentativas de escrita, que duram já há 30 anos. E no final tudo se condensa.

Como é que alguém que começou a rimar na rua, com apenas 13 anos, lida hoje com o sucesso, os prémios e a popularidade? Isso modificou-o de alguma forma, enquanto pessoa ou artista?

Quando não se perde o que nos move, quando não nos distanciamos do que nos torna humanos e continuamos de mãos dadas com os porquês que nos fazem expressar, então aquilo que o coração me pede, sob a forma de canção, faz com que continue eu mesmo, ainda menino. Continuo simplesmente a fazer canções para me tentar entender e ao que está ao meu entorno, para assim compreender o mundo de um outro modo, através de um olhar muito íntimo. Ao enveredar no meu eu mais profundo, continuo a ser essa criança, através dessa tentativa de comunicação com os outros que são as canções.

Trabalhou durante muitos anos com crianças de rua, como foi essa experiência?

Tive a honra de trabalhar nesses projetos sociais de movimentos humanitários e entendi a importância da palavra, da solidariedade e de nos tratarmos a todos como iguais, porque não é o dinheiro que nos torna melhores pessoas. A verdade é que essa realidade com a qual contactei não era assim tão diferente da realidade em que a minha família vivia, numa constante luta pela sobrevivência e pela dignidade, num ambiente extremamente hostil e inseguro. Ao conviver com essas pessoas tive lições de coragem, de resiliência e de fé.

É por isso que defende tanto a educação como uma prioridade da sociedade?

​​​​A educação é uma ferramenta transformadora da sociedade, é através dela que também nos reconhecemos como povo, ao entendermos a beleza e a dureza da nossa história, a pluralidade das nossas culturas. A educação é tudo, porque é através dela que aprendemos a ver-nos como gente.

A mensagem ainda continua a ser o mais importante na sua música? Ou seja, a arte continua a ser um meio privilegiado para passar a mensagem?

No meu caso, a arte condensa-se em tantas energias e pensamentos, que tento sempre expressar da melhor forma o que me move e me toca. A arte é sem dúvida uma das coisas mais especiais deste planeta, é algo fundamental para o ser humano.

Foi por isso que, dez anos depois, regravou uma nova versão do seu primeiro álbum, retirando alguns termos e expressões que poderiam ser considerados ofensivos?

Com o tempo a gente vai aprendendo, vamo-nos percebendo melhor e tentando, repito, tentando, trilhar um caminho que nos transforme num ser mais leve, mais evoluído. E isso também tem de se refletir no que vamos construindo na arte.

Tem esse cuidado quando escreve e compõem?

Nesse caso é o coração que me guia, sempre, estando ao mesmo tempo atento ao que o outro tem para me ensinar e aos ensinamentos do tempo já vivido.

Qual é o papel dos artistas numa sociedade cada vez mais bipolarizada como a que existe hoje no Brasil e no mundo em geral?

O papel dos artistas é aquele que cada um imagina para si próprio, porque cada pessoa tem a sua própria conceção da vida e uma maneira de se expressar. Cada um age de acordo com o que o coração lhe pede nos diferentes momentos da vida.

Acredita que os artistas devem tomar uma posição?

Acima de tudo acredito que as pessoas devem ser livres, mesmo vivendo num ambiente em que tanta coisa é pré-determinada e escolhida. E portanto respeito muito essa ideia de que o artista deve ser livre e naturalmente, nessa liberdade, ele vai expressar os seus olhares sobre o mundo.

Como vê a atual situação política e social do Brasil?

Um caos total, com muita gente querendo fazer o bem e um tanto esmagador e gigantesco de gente a querer fazer o mal, literalmente.

O que sente ao ver uma música sua, como a "Não Existe Amor em SP", tornar-se título de um movimento cívico, como aconteceu há uns anos em São Paulo?

Que faço parte de uma geração inteira que quer mudar para algo mais positivo, que vá ao encontro de uma ideia de sociedade menos desigual e mais digna.

Participou recentemente, numa manifestação a favor da proteção da Amazónia, lado a lado com a atriz Maitê Proença, que foi apoiante do presidente Bolsonaro. É sinal que há causas mais importantes que as diferenças políticas?

Se acabar o oxigénio todo o mundo morre, ponto.

Espiral da Ilusão, o seu último álbum, já tem mais de dois anos. Para quando um novo disco?

Penso, vivo e respiro música no meu dia-a-dia e a canção é uma daquelas coisas mágicas, que é dona do tempo dela, não somos nós que as dominamos. Se e quando isso vai desaguar num álbum, não sei, apenas me resta aguardar e trabalhar. Trabalhar, trabalhar e trabalhar...

Esteve em julho em Portugal, para atuar no festival Mimo, em Amarante. Como será agora este concerto em Lisboa?

A energia em Amarante foi linda, nossa, quanta gente estava lá! E Lisboa também vai ser muito especial, tenho a certeza. Vamos provocar um encontro entre as pessoas. Quando converso com o DJ Dandan falamos sempre disso, de tentar fazer do nosso show a banda sonora perfeita para esse encontro. E quando o conseguimos a magia acontece, porque é através desses encontros que as pessoas vão tecendo as suas memórias.

Criolo
Lisboa ao Vivo, Lisboa.
20 de setembro, sexta, 21h.
Bilhetes €25

Mata do Jardim Público, Évora.
21 de setembro, sábado, 20h30.
Bilhetes €10 (espetáculo integrado no festival Évora Urban Village)

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