Coro de Santo Amaro de Oeiras. Há 60 anos a cantar e há 40 a desejar "A Todos Um Bom Natal"

O grupo coral que deu um dos hinos do Natal à cultura popular portuguesa celebra o 60.º aniversário em ano de pandemia. Passaram a cantar de máscara, com distanciamento social e apostaram nos concertos virtuais.
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Será difícil encontrar um português que nunca tenha visto e ouvido, pelo menos uma vez, um grupo de crianças alinhadas e afinadas a cantar a música que tornou o Coro de Santo Amaro de Oeiras conhecido em todo o país.

Tudo começou há 60 anos quando o maestro César Batalha fundou o coro "com apenas 15 anos" e transformou o coletivo de vozes naquilo que ele é hoje: um dos mais reconhecidos da cultura popular portuguesa. O mentor saiu em 2010 mas "continua ligado a nós", afirma Leonor Marques, a atual diretora artística, que descreve o grupo como um projeto pessoal do maestro e da sua mulher Ema Batalha, que o consideravam "o seu bebé".

Mais conhecida por Nonô, Leonor está há 42 anos no Coro de Santo Amaro de Oeiras e foi uma das primeiras solistas do "A Todos Um Bom Natal". Começou por fazer parte do coro infantil, pertenceu ao primeiro agrupamento dos Ministars, esteve no Conclave (o primeiro coro juvenil do grupo), passou pelo Contraponto (agrupamento instrumental) e agora canta no coro adulto. "Estes anos têm sido muito ricos para mim", assegura a coralista que admite já ter "passado por tudo" no coro incluindo a direção, de que faz parte atualmente.

O grupo amador vive da disponibilidade e dedicação dos cantores que raramente faltam aos ensaios duas vezes por semana, apesar de trabalharem a tempo inteiro. "Temos duas maestrinas profissionais e pagamos uma pequena cota mensal, mas todos os membros da direção andam aqui por carolice", garante.

Leonor é educadora de infância de profissão e pegou no coro infantil porque "fazia todo o sentido perdurar e dar continuidade ao trabalho do maestro". Cantar e fazer parte da direção do grupo são duas faces de uma moeda que conta parte da história de outro coralista há mais de quatro décadas.

Paulo Cruz é o membro mais antigo do coro e canta no grupo há 45 anos. "Foi uma vida aqui, foi vir para aqui menino e fazer-me homem." Quando entrou no coro tinha 17 anos, ainda estudava e era solteiro. Está há mais tempo no coro do que está casado e também há mais anos do que aqueles durante os quais foi bancário (a profissão que exerceu durante 36 anos). Hoje está reformado e continua a dedicar tanto ou mais tempo ao grupo ao qual se juntou "porque era o coro da terra", justifica o natural de Oeiras e antigo diretor do coro.

"É um coro familiar" assume Leonor que trouxe as duas filhas para o grupo, mas não foi a única a fazê-lo. Para além de vários casais existem também avós, filhos e netos a "cantar em conjunto". Uma passagem de testemunho geracional que "aconteceu de forma natural" para praticamente todos os membros da direção.

O tempo que dedicam ao hobby acaba por ser retirado à vida familiar e é frequente os pais levarem os filhos para os ensaios "desde pequeninos" e depois "é um gosto que acaba por se criar". "Esperemos que eles sejam o futuro do coro", reconhece a diretora do coro infantil.

"É uma coisa que nos ocupa muitas horas, uma dedicação que não seria possível sem o contributo das nossas famílias". Por seu lado, Paulo Cruz reconhece "ter ficado muitas vezes sem jantar" para chegar a horas aos ensaios.

Durante mais de quatro décadas foi o único da família a fazer parte do coro e só nos últimos anos é que uma das filhas e a mulher se juntaram ao grupo, mas garante que não as arrastou, "vieram por gosto próprio".

Relações familiares à parte, o coro aceita qualquer pessoa "que seja afinada" mesmo que não tenha qualquer tipo de educação musical.

Atualmente, a maioria das pessoas que fazem parte do coro "não sabem música" e são muito poucas as que sabem ler uma pauta. Leonor calcula que sejam 95% dos atuais membros, mas está confiante: "daqui a uns anos a situação pode mudar - até porque o coro criou nos últimos anos uma escola de música de onde poderão vir a sair futuros coralistas."

A Organização Mundial da Saúde classificou o ato de cantar como um dos que representa maior risco no contexto da propagação do novo coronavírus.

"Cantar em coro é das atividades mais perigosas porque nós projetamos a voz e todas as gotículas andam por aí pelo ar", explica Leonor. E quando o Governo decretou o primeiro estado de emergência em março, o coro encerrou de imediato. "Tínhamos muitos concertos aos quais não conseguimos dar resposta. Infelizmente tiveram que ser cancelados."

Durante o período do confinamento, os ensaios ocorriam através de videoconferência, cada um em sua casa, à frente do ecrã e a seguir as indicações da maestrina. "Um exercício muito solitário" porque não tinham oportunidade de ouvir todos os outros "e isso é que é ser coro, podermos ouvir-nos uns aos outros", constata a diretora artística.

Foi uma temporada que ajudou cada um dos coralistas a corrigir a afinação e a respiração, porque estavam mais focados na prestação individual mas não podiam fazer o que mais gostam - cantar em grupo.

Leonor descreve o processo como "difícil" e foi isso que levou o coro a retomar os ensaios presenciais logo que foi possível. Investiram em desinfetantes, adesivos para assinalar a distância de segurança, acrílicos de separação para as maestrinas e, claro, em máscaras.

Mas o maior desafio foi "voltar a dar alguma dinâmica ao coro, voltar a trazer os coralistas e mantê-los interessados" admite Paulo Sousa, presidente da mesa da assembleia geral do coro.

Cantar de máscara é "um grande desafio" porque a respiração é mais difícil e os cantores ficam mais cansados. Além disso, "a voz não sai tão projetada", mas "não há volta a dar, temos de cantar com máscara por razões de segurança", remata.

Dentro dos vários modelos de máscara, a maioria dos coralistas opta por cantar com máscara cirúrgica - se bem que recorram a uma segunda opção. "Utilizamos uma máscara transparente rígida quando fazemos concertos on-line para que seja possível ver a cara e a expressão das pessoas que também é muito importante quando se canta", explica Paulo Sousa.

Apesar das dificuldades, o regresso aos ensaios valeu a pena porque voltaram a estar juntos. "É o gosto por cantar e o gosto pelo convívio que nos faz ultrapassar este momento mais crítico", considera Leonor.

Mais afetados ficaram os espectáculos desta época festiva, tradicionalmente uma das alturas mais trabalhosas do ano para o grupo. Os concertos passaram a ser virtuais e envolvem agora muitas gravações em vídeo, até porque as solicitações não pararam de chegar.

"Temos imensas coisas para fazer" desabafa Leonor, embora "tudo dê muito mais trabalho". Não basta chegar ao local do concerto e cantar. Agora é preciso preparar a gravação, gravar, editar - tarefas a que o coro não estava habituado mas que passaram a fazer parte do quotidiano.

Este ano, e como não poderia deixar de ser, o coro infantil voltou a participar no Natal dos Hospitais mas num formato diferente. Afinados, de camisa branca, saia tirolesa azul (as meninas) e de máscara transparente (todos) interpretaram a música através de videoconferência para todos os que acompanharam a emissão solidária na RTP.

Leonor lembra-se perfeitamente do primeiro Natal dos Hospitais em que cantaram a canção, há 38 anos. Entoá-la ainda "arrepia e traz as lágrimas aos olhos" à diretora artística do coro.

Cantar o "A Todos Um Bom Natal" é "regressar um bocadinho ao passado e às memórias da nossa infância".

A música da canção é da autoria do maestro César Batalha e a letra da esposa, Ema Batalha. Foi gravada pela primeira vez "em 1978 ou 1979" e faz parte da programação do Natal dos Hospitais desde o início.

A história da canção funde-se com a do coro infantil criado há 44 anos (mais de década e meia depois da criação do coletivo): "todos os natais somos convidados por imensas instituições, pelas televisões, para darmos a nossa voz ao ex-libris do Natal, do concelho de Oeiras e até de Portugal inteiro".

A canção já faz parte das memórias desta época de muitos portugueses e está gravada - quiçá para sempre - na memória do coralista mais antigo. Paulo Cruz sabe a maior parte do repertório de cor e quando canta muitas peças "já nem precisa de olhar para a pauta". A que acabou por se tornar o hino do Natal é uma delas, embora não seja a sua preferida.

O coralista não retira importância à música "pela visibilidade que deu ao coro" mas reconhece que a herança representa um desafio para o futuro. "Temos de trabalhar para deixarmos de ser conhecidos apenas como o coro do 'A Todos Um Bom Natal'", frisa o ex-diretor.

"Penso que é das músicas que mais se ouve no Natal em Portugal", afirma Leonor com visível orgulho, "mas ainda há quem não a cante bem", alerta.

Muitas pessoas cantam "desejo um bom Natal" em vez de "que seja um bom Natal", esclarece Leonor a sorrir.

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