Conviver com o crime ao virar da esquina: cinco policiais para ler nas férias
A invasão de policiais nórdicos está a ser gradualmente substituída pela produção dos autores norte-americanos, que têm sempre na capa a referência a serem um best-seller, seja nas tabelas de vendas das livrarias, como nas dos jornais e revistas dos Estados Unidos. Se os primeiros se caracterizam pela crónica infelicidade e violência de sociedades que se diziam serem as melhores e mais avançadas, já os segundos resultam, por norma, de um primarismo de escrita em que parágrafos curtos e um atabalhoado turbilhão de propostas contínuas distraem o leitor e tentam colocar algum sal num mar insosso de crises políticas, que estão sempre à beira de uma catástrofe mundial. Com agosto à vista e já em plena época de férias, sugerem-se alguns dos que escapam à vulgaridade e não irão fazer o leitor arrepender-se de ocupar espaço na mala com lixo alegadamente literário que à volta deixariam para trás.
A chegar às livrarias amanhã, Duas Noites em Lisboa é como se chama o thriller de Chris Pavone, que na capa é resumido assim: "Um rapto em Lisboa que abala a Casa Branca". A recensão do New York Times referia há dias que não era tão bom como os dois livros anteriores do autor, nada que a curiosidade sobre um "romance" que alegadamente envolve espionagem em terras portuguesas desacreditasse à partida. A coisa lê-se até de uma vez apenas se se estiver na praia sem nada mais para o substituir. Porque Chris Pavone pavoneia-se pela nossa capital com um ritmo alucinante próprio de um bom thriller, entre outras razões, como a de a mentalidade portuguesa ficar feliz quando o país é retratado num escrito estrangeiro. Aliás, parece que a moda de usar Espanha como cenário está a definhar e que Portugal é o próximo oásis.
Pavone faz uso de todas as potencialidades que a geografia e o urbanismo lisboeta oferece, descrevendo locais e situações que a cidade proporciona a quem a utiliza. Não comete muitos erros, ou seja, deve ter passado cá uns bons dias e anotado tudo o que lhe chamava à atenção. Mais, terá feito o trabalho de casa com razoáveis conhecedores da vida da capital portuguesa e, assim, ninguém se sente enganado.
É claro que descobre que os locais "mastigam pastéisde Belém [?] logo pela manhã, provavelmente confundindo os moradores com turistas. Também não ignora a apetência por sardinhas em quem passa pelo Rossio, ideia que se deverá à existência de uma loja nessa praça onde se vendem conservas. Aprecia os grafittis civilizados que dão a componente artística casual, não ignora o castelo medieval que se vê ao longe numa colina, aproveita as ruas de Alfama para uma perseguição e faz as personagens passearem por tudo o que é pasto dos estrangeiros que nos visitam. Tudo bem, em Berlim faria o mesmo, em Paris repetiria o que já se leu, Em Londres evocaria pérolas cansadas...
Sem desvendar mais do que está na contracapa, Duas Noites em Lisboa relata o acordar de uma mulher sem o marido ao lado na cama, que terá ido fazer uma corrida matinal. Só que este não regressa ao quarto e, para promover uma ação frenética, logo a mulher inicia um périplo que a levará a uma esquadra da PSP e em seguida à Embaixada dos EUA para dar parte do desaparecimento.
Os polícias que a atendem ficam tão surpreendidos como os funcionários da representação diplomática com a urgência em apresentar a sua suspeita: que o marido tinha sido raptado.
É divertido o retrato que faz do homem e da mulher, os polícias portugueses, que se mostram desconfiados com a pressa. Não os desconsidera, aliás a composição dessas duas personagens está bem feita. Já quanto ao jornalista norte-americano, que interpela a mulher à saída da embaixada umas dezenas de minutos depois, vê-se que é metido a martelo, de modo a poder preencher a última centena de páginas.
A partir daí, Pavone vai esticando o cenário lisboeta até onde é possível. Pelo meio, de forma enfadonha, recorda o que aconteceu à protagonista durante a sua juventude. Referências que piscam o olho a toda a vulgaridade do movimento Me Too, mas que, pensará o autor, lhe darão uma boa porção de leitoras com o uso e abuso de queixas sobre o comportamento sexual e predador de certos homens. Pavone, no entanto, nunca se esquece de manter a ação quente e até recorre ao Elevador da Bica para uma perseguição, como se estivesse em São Francisco.
Só bem no final é que o leitor será capaz de reunir as pistas dadas durante as quinhentas páginas anteriores e compreender a terrível maquinação que vai "abalar a Casa Branca". Contrariamente a alguns finais dos policiais que se seguem, Chris Pavone surpreende com o desfecho. O leitor sente que foi levado pelo caminho errado, mesmo que o autor precise de inventar um epílogo - extremamente moralista - de 14 páginas para justificar a razão por que tudo aconteceu.
Duas Noites em Lisboa
Chris Pavone
Editora Lua de Papel
556 páginas
(amanhã nas livrarias)
O mais curioso neste policial da autora Margarida Utne é poder ser lido com a convicção de que é escrito por uma norueguesa. Sem Rasto passa-se em 2018 naquele país e inspira-se num crime que aconteceu e que Utne (Margarida Ponte Ferreira, na verdade) acompanhou com atenção pela imprensa. Como o caso não teve uma resposta esclarecedora por parte dos investigadores, a autora cria o seu próprio fim. Que é inesperado e bem sustentado. Aliás, todo o romance é perfeito, bem conduzido e sem exagero na utilização dos habituais truques literários com que os romances de crime nórdicos estão povoados desde que este género de literatura se tornou comercial no resto do mundo, à conta da saga Millennium de Stieg Larsson.
Para quem leu o livro sem desconfiar da proximidade nacional da autora, um entre outros policiais recentemente lançados, é uma surpresa descobrir que a autora não é norueguesa. Porque Sem Rasto obedece a todas as regras do policial nórdico, apenas se diferencia pela economia de situações em que os de lá se perdem para encher folhas.
Em 268 páginas, Margarida Utne monta a história, engana o leitor com as habituais pistas falsas do género, e vai encaminhando a narrativa no sentido que lhe interessa. Quando o leitor está embalado, muda o narrador e tudo o que se segue explica o que foi escondido antes. Fica-se surpreendido pela nova ótica, mas essa alteração de ângulo mais não faz do que reforçar o desejo da leitura das páginas em falta. E, como um brinde inesperado, os últimos dois capítulos promovem uma reviravolta que faz o leitor sorrir da sua ignorância até então. Tal como os responsáveis da investigação policial, estava-se a leste da realidade e enganado pelo curso da narrativa.
O final de Sem Rasto é inesperado e evita, como nos policiais que se seguem - repete-se -, um amargo de boca devido à dificuldade em fechar a história em grande. Além de que sugere que há uma outra história para ser continuada num segundo volume. Que o leitor agradecerá.
Sem Rasto
Margarida Utne
Editora Manufactura
269 páginas
Depois de A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, cada regresso do autor é sempre uma incógnita. Houve uns "policiais" que seguiram as regras do género, no entanto a maioria desvia-se da qualidade do seu maior sucesso. No recente, O Caso Alaska Sanders, existe uma aproximação a Quebert, tanto na estrutura do livro como na trama - bem como na espessura do volume e características gráficas -, mesmo que Dicker use à abundância a publicidade descarada à sua persona literária e aos livros que publicou entretanto, compondo o narrador mais uma vez à sua imagem pretensiosa. Enfim, nada que perturbe a leitura e que até tem o lado positivo de fazer interligações a histórias antigas que faz confluir neste, dando mesmo a entender o tema do próximo livro.
Tal como em Quebert, a narrativa vai e vem ao sabor de sucessivas descobertas e, para se chegar à solução do crime, é um caminho de reviravoltas constantes. Não que isso desagrade ao leitor, que por norma aprecia ir descobrindo que afinal as coisas eram diferentes do que pensava. No entanto, este Caso Alaska Sanders tem uma evolução no processo de escrita do autor, que atrai o leitor pela forma como é apresentado: flashbacks que completam a narrativa dos acontecimentos, que dão o outro lado num estilo muito bem escrito. O "eu" das personagens e uma outra versão dos acontecimentos embalam muito bem quem lê e tornam o mistério mais denso. Nada que os grandes mestres do crime não tenham já utilizado, mas que a prosa de Dicker absorve com uma grandeza de estilo inesperada.
Os ingredientes desta investigação protagonizada por um escritor de sucesso e um polícia que se quer reformar não diferem em muito do que se espera do autor, daí que seja fácil seguir o caminho que pretende impor ao leitor. Mensagens anónimas, informações erradas, terriolas insignificantes dos Estados Unidos, vizinhos que dão pistas falsas e que baralham o percurso da investigação, polícias que atropelam o processo do apuramento da verdade... não falta nada, repita-se, para quem ficou fã de Quebert. O único problema é Joël Dicker não ter ficado satisfeito com o final que deu ao livro e ter acrescentado mais de cinquenta páginas a explicar a verdade do que realmente tinha acontecido. Não era preciso, além de que não fazer falta é uma narrativa extensa e pouco policial. Que a dupla de investigadores nunca tenha percebido o que realmente uma das personagens tinha feito e que, afinal, alterava toda a solução do crime era supérfluo, por estranho que pareça, pois o livro estava resolvido. Não havia necessidade!
O Caso Alaska Sanders
Joël Dicker
Editora Alfaguara
709 páginas
O escritor Guillaume Musso tornou-se uma estrela no panorama literário francês e a recente tradução do seu A Desconhecida do Sena vem confirmar que esse sucesso não é por acaso. O policial foi o livro mais vendido em França no ano passado e a história que conta aparece tão visual como intrincada.
Para o leitor que abandonou os livros em troca das séries de televisão, este é o melhor substituto que se lhe pode oferecer. Tudo é muito bem descrito, todas as facetas obscuras da capital parisiense estão presentes, bem como faz uma ótima análise e crítica à organização social francesa atual - eminentemente burocrática e ineficiente -, que Musso usa de forma perfeita para tornar mais complexo o desenlace do livro.
Como um francês que não consegue fugir ao brilho de uma realidade nacional que já teve um auge e que agora mais não é do que uma modorra intelectual, o escritor vai buscar bastantes referências filosóficas, artísticas, e, principalmente, arquitetónicas, que são como uma casca de banana para fazer o leitor deslizar de uma página para a outra. Acrescenta uma perspetiva mitológica pouco habitual na literatura policial atual, recorre às descobertas na atividade forense sem facilitismos e confunde quem lê com intrincados volte-faces, proporcionando desse modo uma leitura sôfrega.
A confusão que provoca com o reaparecimento de uma vítima mortal de um acidente de aviação é muito bem engendrada, replicando as falhas de pilotagem que provocaram o grande e estúpido acidente do avião da Air France sobre o Atlântico em 2009, situação que transpõe para as águas sujas do Rio Sena, bem como as falhas dos envolvidos no salvamento de uma das personagens e nas posteriores andanças.
Tudo está correto neste policial de Guillaume Musso, complementado com o achado gráfico de imprimir cinco recortes de jornais que dão suporte à ficção, mesmo que o final seja tão metafórico, místico ou mitológico, que obriga o leitor a relê-lo - uma ou duas vezes -, se quiser compreender a explicação que sustenta todo o livro.
A Desconhecida do Sena
Guillaume Musso
Editora Gradiva
407 páginas
Totalmente diferente dos anteriores policiais é o livro Assim Falou a Serpente, de Luís Corte Real, que relata a segunda história do detetive Benjamim Tormenta. Tudo se passa durante uma investigação com o cenário principal na cidade do Porto, onde "avistamentos horrendos", a coberto de um nevoeiro durante a madrugada, exigem a presença deste protagonista. Tormenta não é o detetive tradicional, antes evoca o género da literatura fantástica para a narrativa em que está exposta a sua atividade.
Além do Porto, a ação percorre outros lugares, desde a capital do então Império Português, até ao longínquo Egito, nada que impeça o detetive Tormenta de descobrir as razões dos mistérios que o levam a outras partes do mundo, como anteriormente fez em Macau. Com uma diferença se comparado com as personagens dos livros anteriores, o protagonista tem de se haver com as suas crises pessoais e, fundamentalmente, lidar e lutar com o oculto.
O ano em que tudo acontece é 1874 e o leitor habitual de policiais clássicos da primeira metade do século passado - até dos contos mais negros de Edgar Allan Poe - não é capaz de fugir às assombrações que alguns dos mais famosos autores do género colocaram como pano de fundo de diversas das suas histórias.
Benjamim Tormenta vai mais longe, pois lida com o oculto e não apenas com a realidade do crime numa sociedade compreensível.
Tem a ajuda de uma boa recriação de antigos cenários, que contam com uma recuperação visual muito correta - visível na apresentação gráfica do volume - e que, de tão original, surpreende. Em Serpente não falta o mistério... mas sempre revestido pelo ocultismo e pelo maléfico, que permite, mais uma vez, a viagem no tempo proporcionada pelo primeiro volume do detetive Tormenta.