Contar histórias ou a arte do impossível

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São memórias de 1994: foi há 30 anos que Nuno Artur Silva escreveu e António Jorge Gonçalves desenhou as aventuras de Filipe Seems, “um detetive muito particular”. Entenda-se: não apenas um detetive particular, mas um detetive “muito particular” — o “muito” que o distingue fá-lo pertencer a uma tradição de aventura que se vai reinventando através dos enigmas que a personagem enfrenta, protagoniza ou, ironicamente, multiplica.

Agora reeditados, com chancela da Asa, os livros da Trilogia Filipe Seems continuam a ser um fascinante acontecimento, não apenas da banda desenhada portuguesa, mas das ficções que por cá se fazem. Afinal de contas, estes três álbuns surgiram numa sociedade narrativamente bem diferente: primeiro, porque a miséria (narrativa, precisamente) do Big Brother e seus derivados ainda não tinha contaminado o imaginário social, a ponto de “naturalizar” o vazio de pensamento da Reality TV como padrão compulsivo de comunicação; depois, porque o triunfo das “análises” televisivas como modelo quotidiano de perceção conseguiu a proeza jornalisticamente desastrosa de confundir o acontecimento, seja ele qual for, com a enunciação de um saber teleológico (à beira do teológico) em que já não há factos, mas apenas destinos.

Seria simplista reduzir as atribulações vividas por Filipe Seems ao conjunto de referências que os autores mobilizam. Em todo o caso, vale a pena citar algumas delas, quanto mais não seja porque refletem a consciência de que, pelo menos até certo ponto, contar histórias é também um reinvestimento criativo nas heranças que nos legaram.

O primeiro volume, intitulado Ana, assume-se como herdeiro da literatura e do cinema “noir”, de Raymond Chandler a Jacques Tourneur: nele encontramos o detetive que tenta decifrar um mistério que lhe é apresentado por uma personagem feminina, cedo se descobrindo enredado na sedução que essa personagem transporta. O segundo, A História do Tesouro Perdido, projeta-nos em territórios mais ou menos exóticos da aventura, também eles ligados a um património multifacetado de livros e filmes de que, na década de 80, Indiana Jones terá sido uma espécie de resumo mitológico. Enfim, A Tribo dos Sonhos Cruzados sugere uma revisão dos álbuns anteriores, aceitando o mundo dos fantasmas como um dado incontornável da dimensão humana — como num filme de David Cronenberg, a imagem do corpo desafia a sua pertença a qualquer universo realista.

Um grande plano da "Trilogia Filipe Seems" (volume 3).

A descrição da trilogia como um exercício de envolvente nostalgia fará sentido, sobretudo tendo em conta as variações, no primeiro volume, em torno de alguns cenários emblemáticos da cidade de Lisboa. Ainda assim, creio que tal “revivalismo”, hoje em dia muito poderoso no espaço televisivo, é escasso para dar conta da conjugação de dois elementos essenciais: a vocação onírica dos desenhos de António Jorge Gonçalves e a vertigem descritiva da prosa de Nuno Artur Silva.

Podemos dizer que cada álbum amplia as sugestões anti-naturalistas experimentadas pelo álbum anterior. Aliás, logo no primeiro, a investigação da personagem de Ana (das várias “Anas”…) vai-se enredando numa demanda que, em última instância, nos leva a formular a pergunta que pontua toda a trilogia. A saber: que significa isso de olhar para o mundo à nossa volta e transformá-lo em histórias que podemos partilhar com os outros?

Quando chegamos a A Tribo dos Sonhos Cruzados, a transfiguração é esfuziante. A BD resiste a qualquer normalização narrativa, incluindo uma certa noção de “kitsch” que se alimenta do gratuito do seu próprio aparato: o texto assume a fragmentação poética de um sonho sem sonhador identificado, ao mesmo tempo que o desenho abandona a certeza geométrica dos quadradinhos clássicos para se espraiar num território em que a fronteira entre realidade e sonho se esbateu — literalmente.

Descobrir ou revisitar a Trilogia Filipe Seems não é, por isso, uma banal celebração nostálgica. Movido pelo vírus da curiosidade, Filipe Seems é uma personagem que, por vezes contra si próprio, não se aquieta nas possibilidades que a vida comum lhe oferece – as suas histórias convidam-nos a visitar o impossível e a sua infinita melancolia.

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