Vicente Wallenstein em 'O Teu Rosto Será o Último': histórias de muitas solidões.
Vicente Wallenstein em 'O Teu Rosto Será o Último': histórias de muitas solidões.

Como sobreviver a Beethoven

A história do jovem pianista de 'O Teu Rosto Será o Último' resiste a qualquer banalização novelesca – com rara precisão, Luís Filipe Rocha filmou o ser (ou não ser) português.
Publicado a
Atualizado a

O jovem Duarte, pequeno prodígio do piano, figura nuclear de O Teu Rosto Será o Último, surge interpretado por três actores: Jaime Távora, Alexandres Carvalheiro e Vicente Wallenstein, respectivamente aos 7, 13 e 20 anos. O dispositivo de representação é conhecido e, por assim dizer, tradicional na história do cinema. Afinal de contas, a passagem do tempo envolve sempre uma metódica, ainda que imprevisível, reconfiguração dos corpos.

O filme de Luís Filipe Rocha assume-se, sem complexos, no interior de tal tradição, mas há qualquer coisa de milagroso no fluxo narrativo que nasce das suas matérias. Acontece que essa passagem do tempo não se deixa representar por qualquer calendário banalmente social. É coisa íntima e secreta, e tanto mais quanto Duarte, os seus familiares e o próprio espectador do filme não possuem “chaves” interpretativas capazes de racionalizar o drama interior da personagem. A saber: como viver o dom do piano?

Por aí se define a moral narrativa de O Teu Rosto Será o Último. Assim, tudo acontece como se as “três idades” em que conhecemos Duarte não fossem etapas de uma evolução, mas sim tempos acumulados num só presente. Não há passado nem futuro, apenas o presente em que acontece esse outro milagre primordial a que não desistimos de dar o nome de sempre: cinema.

Creio que há outra maneira de dizer isto, não abstracta nem especulativa, mas visceralmente histórica. O Teu Rosto Será o Último é dos raros filmes da produção portuguesa em que a evocação do 25 de Abril (pré e pós) se faz através das singularidades imprevisíveis das personagens, não impondo a essas personagens um determinismo de telenovela tecido de menosprezo pelo factor humano. Com a particularidade não secundária de o mundo rural surgir, não como uma coleção de retratos pitorescos, eventualmente anedóticos, mas sim enquanto corpo vivo de personagens, relações, crenças e descrenças.

O Teu Rosto Será o Último enfrenta o drama muito português que nasce da nossa acomodação à partilha de uma história “colectiva” em que deixou de haver gente, para apenas existirem “símbolos” capazes de alimentar o nosso pobre imaginário televisivo (que, salvo melhor opinião, apenas se desenvolveu de forma significativa no domínio “patriótico” do futebol). No limite, Duarte não é apenas o jovem enquistado num território familiar de muitas feridas interiores, mas uma derivação carnal de cada um de nós, inquieto com o que não sabe dizer sobre a história colectiva em que descobre a solidão individual, pessoal e intransmissível como um passaporte que ninguém emitiu.

Daí também que Duarte, não sendo um revoltoso da revolução (passe a redundância…), nos surja como o menos integrado dos seres humanos. Quando ele resiste à dor que perpassa na música de Beethoven, nenhum elemento artístico se revela capaz de esgotar o seu diferendo. Para Duarte, o drama não está nas partituras do compositor surdo, mas na própria dificuldade de sobreviver ao enigma da identidade – o espectador, se for humilde, compreenderá que é também a sua história que está em jogo.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt