Como esculpir um romance a partir de um bloco de pedra
A ascendência italiana do escritor francês Jean-Baptiste Andrea (n.1971) sobrepôs-se à do país onde nasceu e encontrou na Itália das primeiras cinco décadas do século passado o cenário ideal para contar uma história em Velar por ela, que se devora do princípio ao fim com grande intensidade. A mesma energia com que o autor fornece força e génio a um escultor para criar obras que o tornam célebre apesar de tudo o que lhe acontece nos primeiros tempos de vida prognosticar o contrário. O protagonista Mimo Vitaliani nasce pobre, é de tão baixíssima estatura que todos o chamam de anão, órfão de pai e abandonado pela mãe, que o entrega a um tio para cuidar dele, ou seja, sem futuro grandioso pela frente.
Se é desta forma que Andrea dá início ao protagonismo de Mimo no romance, também rapidamente acrescenta um volte-face ao trazer para a narrativa a presença de uma jovem da sua idade, obrigando-o a dividir o papel principal de que se pensava ser dono. Socialmente, a jovem aristocrata Viola pouco tem a ver com o futuro escultor que se irá afirmando na sua arte nas páginas que se seguem. Que é capaz de sair da poeira que o cobre enquanto ajuda o tio a desbastar a pedra de que irá fazer arte para igrejas e casas de gente abastada. As mãos de Mimo têm a capacidade de transformar os blocos de rocha bruta em estátuas que seduzem a clientela, mesmo que o primeiro grande trabalho que realiza sozinho seja a reprodução em mármore de uma ursa para oferecer a Viola. A família da jovem reconhece a sua genialidade precoce e torna-se mecenas de alguém que deveria por destino permanecer anónimo e ser esquecido como todos os que pertencem à sua classe social.
Viola é o melhor contraponto a Mimo, uma personagem extremamente especial e a quem o escritor concede uma enorme ambição para alterar as rígidas normas a que as mulheres estavam sujeitas à época e que por intermédio de uma bizarra amizade permite ao escultor uma afirmação pessoal a que nunca teria acesso. Essa convivência de anos entre ambos é um dos pontos altos do romance e irá permitir um final em muito especial, que encerra o livro de uma maneira inesquecível. Final que também fecha um mistério sobre uma das estátuas que Mimo teria esculpido e que possuía um inexplicável poder, confirmando com Velar por ela que se pode esculpir um livro inteiro a partir de um bloco de pedra.
Até aqui não se foi além de um tema que qualquer outro livro poderia tratar, mas o modo como Jean-Baptiste Andrea o faz torna-o impossível de não ser lido sofregamente. Seja pelas descrições de alguém que não teria direito a tornar-se um escultor reconhecido, seja pelo cenário de uma natureza fascinante daquela região italiana, em que até, por exemplo, o relato das laranjeiras ganha uma expressão inesperada na disputa entre famílias, e também pela introdução de acontecimentos históricos reais como imposição para modelar o mundo que rodeia Mimo e do qual aprende a beneficiar-se.
Vai passar à frente do leitor a Grande Guerra e ainda não está recomposto quando a Segunda Guerra Mundial se impõe, alimentando-se a narrativa da ascensão de Mussolini ao poder e da consequente afirmação da ideologia fascista, bem como do futuro polémico papel do papa Pio XII em relação ao extermínio dos judeus. Na apresentação do seu romance na Feira do Livro de Lisboa, Andrea comentou o surgimento da extrema-direita em Itália no século XX e de como o ressurgimento dessa ideologia no mesmo país um século depois se tornou uma coincidência preocupante.
Um entre vários paralelos que Velar Por Ela contém, mesmo que não fosse essa a intenção do escritor. O seu objetivo era ficcionar uma figura real, a do escultor Mimi Vitaliano (1904-1986), e montar uma biografia em que os factos da História embatem com os da vida dos cidadãos. Para o fazer, recuperou um género literário que considera estar amaldiçoado, o do romanesco. Aquele em se conta uma história em vez de seguir os modelos comerciais que se têm afirmado nos filões editoriais dos últimos tempos. Encaixar Velar por ela como pertença a um filão que tem vindo a perder gás não é uma questão para Jean-Baptiste Andrea, nem para o júri do Goncourt que galardoou o romance, antes o melhor registo para escrever a história que queria.
Também não se consegue encontrar no livro uma influência fundamental da sua anterior profissão, a de realizador de cinema, porque mesmo sendo o romance muito cinematográfico, o leitor apenas se beneficia dos cenários que se assemelham aos que poderiam ser projetados num ecrã de cinema para melhor compreender a narrativa do livro. Na referida apresentação lisboeta, Andrea confessou que a realização é uma etapa do passado e que o ritmo dos seus livros seria impossível de replicar num filme. Uma atividade que parece ter abandonado face ao enorme sucesso do seu anterior e muito premiado trio de romances, após uma carreira feita numa pequena editora, L’Iconoclaste, a que acreditou no talento de Andrea após mais de uma dezena de recusas em o publicar.
Jean-Baptiste Andrea
Porto Editora
375 páginas
Mais novidades literárias
Da Catalunha
Basta ler as primeiras páginas de Eu Canto e a Montanha Dança para o leitor perceber que está perante uma voz diferente entre as que nascem na Península Ibérica. A da escritora Irene Solà, presa geograficamente pela existência física dos Pirenéus, não escapa a esta fronteira, mas gera um romance inesperado, dominado por uma personalidade criativa muito própria, de que nunca se afasta, confirmando tudo o que se antevia conforme se avança na leitura. Este seu segundo romance tem início com um raio que mata um homem e logo nesse momento a narrativa fica embebida de uma mitologia própria da região, cercada por uma prosa cerrada no início, que se irá libertando desse espartilho gradualmente, sem nunca deixar desiludir.
Irene Solà
Cavalo de Ferro
192 páginas
De Portugal
A reedição de Betânia confirma quase duas décadas e meia depois a surpresa que este segundo romance de Filomena Marona Beja (1944-2023) provocou à época. Estamos numa Lisboa entre os anos de 1950 a 1970, que a escritora recupera como cenário para a sua protagonista Marta, iluminando as características de uma sociedade em muito esquecida. Um dia-a-dia, em muito feminino, que se sobrepõe a um período histórico não tão distante assim e que destaca causas que ainda permanecem.
Filomena Marona Beja
Parsifal
160 páginas
Do Japão
Kawabata é dos poucos autores eruditos japoneses a que o Ocidente teve acesso, em muito devido ao Prémio Nobel que recebeu. Em O Arco-Íris confronta duas irmãs perante um Japão que ressurge depois de um devastador envolvimento na II Guerra Mundial, com um olhar que à época surpreendia devido ao grande desconhecimento de uma sociedade longínqua e rodeada de mitos muito próprios do conflito que antecedera o cenário deste romance.
Yasunari Kawabata
D. Quixote
207 páginas