No Verão em que completei o ciclo preparatório, os meus pais compraram-me um vestido plissado e uns sapatos de verniz e levaram-me a uma matiné do Cinema São Jorge. Visto com olhos de hoje, este prémio de bom aproveitamento parece absurdo, mas, no princípio dos anos 80, ainda não se ia a este cinema como a qualquer outra sala de Lisboa, sobretudo às multiplexes que começavam a aparecer nas maiores cidades do pais. Esta era uma realidade herdada daquilo a que João Bénard da Costa, antigo diretor da Cinemateca, chamava “as cenas da luta de classes nos cinemas de Lisboa”: “O São Jorge subiu ao topo da escala, sobretudo entre os teenagers. Aos sábados, a segunda matinée - assinalável inovação com que o São Jorge perturbou os fins de tarde lisboetas e, até mesmo, a hora de jantar - passou a ser o único ponto de encontro de jupes longues e fatos príncipe de Gales, capaz de fazer concorrência à missa da uma nos Mártires ou na Estrela”, escreve no livro Os Filmes da Minha Vida/Os Meus Filmes da Vida.Mas o que esta incansável cinéfila ainda não sabia, e descobriu durante esta reportagem, é que o São Jorge não tem três salas, mas quatro. Madalena Parafitas, da equipa de Comunicação do Cinema, faz-nos uma visita guiada e mostra-nos, no último andar do edifício, uma pequena, mas muito confortável sala de projeção (ainda com uma fila de cadeiras originais), destinada a sessões privadas e muito especiais: “Um dos seus frequentadores foi o próprio Salazar, que, de vez em quando, vinha ver filmes de manhã, quando o Cinema estava vazio.” .Nos bastidores, oculta dos olhares dos espectadores, está também a sala reservada aos bombeiros, adjacente à principal cabine de projeção, mas sem vista para o ecrã. Como nos recorda Madalena, “este é um vestígio de um tempo em que os filmes eram em película e, como tal, altamente inflamáveis.” A 24 de fevereiro de 1950, o Cinema São Jorge abriu portas, em ambiente de pompa e circunstância. A austeridade imposta pela II Guerra Mundial fizera com que durante mais de dez anos não se tivessem construído novos cinemas na cidade: os últimos a ser inaugurados tinham sido o Éden Teatro, nos Restauradores, obra-prima do arquiteto Cassiano Branco, em 1937, e o Cinearte, no mais remoto bairro de Santos, a funcionar desde 1940, segundo projeto arquitetónico de Raul Rodrigues Lima.No caso do São Jorge, tudo começa quando é formalizada a venda de um prédio situado na Avenida da Liberdade à Sociedade Anglo-Portuguesa de Cinema, constituída por capitais nacionais (do empresário João Rocha) e britânicos (da Rank Corporation), e o projeto arquitetónico entregue a Fernando Silva, que, aliás, viria a conquistar com este o Prémio Municipal de Arquitectura. Como escreve a historiadora Margarida Acciaouilli no estudo Os Cinemas de Lisboa: “Com o Cinema São Jorge, a natureza das funções do recinto especifica-se e a sua estrutura é moldada pelas exigências do espectáculo e pela notoriedade da artéria onde se erigia.”De grandes cartazes pintados na fachada que dá para a Avenida (seria o último cinema de Lisboa a deixar de os ter, já na década de 1990), o São Jorge distinguir-se-ia também pela qualidade dos filmes exibidos, quase sempre grandes produções anglo-americanas. A Sapatos Vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburguer, com que estreou, seguir-se-iam muitos outros como Sete Noivas para Sete Irmãos, Lawrence da Árabia, A Dama e o Vagabundo, O Último Tango em Paris ou África Minha. À qualidade da programação somava-se o requinte do ambiente. Nos primeiros anos, como nos conta ainda Madalena Parafitas, “o São Jorge tinha um pianista inglês, que viera da BBC, chamado Gerald Shaw. Atuava todos os dias, exceto às 2ªs feiras, num piano que era elevado hidraulicamente, da cave para o palco.”.Outra memória que Lisboa associa ao São Jorge é a monumental árvore de Natal, patrocinada pelo DN, e tradicionalmente inaugurada pela primeira-dama, que tinha como objetivo recolher presentes para as crianças mais desfavorecidos.Mas os tempos em que grandes estúdios, como a Metro Goldwyn Mayer, anunciavam “ter mais estrelas do que o céu”, foram-se perdendo e as chamadas catedrais do Cinema, em Portugal como noutros países, foram parecendo cada vez mais anacrónicas. Em 1980, com projeto do engenheiro Artur Pinto Martins, a antiga plateia dará lugar a duas pequenas salas, as 2 e 3, enquanto os balcões se transformarão na sala 1, hoje Manoel de Oliveira. Assim remodelado, o cinema reabrirá no outono de 1982 , com o filme 007 - For Your Eyes Only, na presença do ator Roger Moore, o terceiro James Bond da saga..Mas este não foi o fim das dificuldades. Em 2000, para evitar o encerramento definitivo, a Câmara Municipal de Lisboa, recorrendo ao direito de preferência, adquiriu o São Jorge, que, nos anos seguintes, passou a acolher grandes eventos de cinema como o Indie Lisboa, a Monstra, a Festa do Cinema Francês ou Italiano, entre outras iniciativas. Para assinalar estas “bodas de diamante” com a cidade, neste dia 24 de fevereiro, às 21.00, a Sala Manoel de Oliveira exibirá A Quimera do Ouro, de Charlie Chaplin, num cine-concerto protagonizado pela Lisbon Film Orchestra. Seguir-se-à um pequeno ciclo de clássicos, que, em tempos idos, estrearam no São Jorge, muitas vezes mutilados pela Censura.