Cinema e poesia em tom indiano
Uma estreia invulgar: Noite Incerta é um filme indiano sobre estudantes de cinema e televisão, reinventando de forma admirável as regras do documentário.
Subitamente, um filme da Índia. Enfim, "subitamente" é apenas uma maneira de sublinhar o misto de estranheza e fascínio. As singularidades de Noite Incerta (título internacional: A Night of Knowing Nothing) não são propriamente uma novidade, já que o filme assinado pela realizadora Payal Kapadia (nascida em Mumbai, 1975) esteve no ano passado em Cannes, onde foi consagrado com L"Oeil d"Or (melhor documentário entre todas as secções do festival), e também entre nós, no LEFFEST, arrebatando o prémio de melhor filme.
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Dizer que estamos perante um admirável documentário será apenas uma aproximação descritiva. O trabalho de Kapadia escapa às normas correntes de qualquer género, apostando num elaborado ziguezague entre uma ficção romanesca em torno de uma jovem que frequenta o Instituto de Cinema e Televisão da Índia e registos de manifestações de protesto dos seus estudantes contra a nomeação de dirigentes escolares por alegado favorecimento político...
A paixão amorosa da narradora esbarra com os preconceitos decorrentes do facto de a família do namorado a considerar indigna do filho, porque pertencente a uma casta inferior; como contraponto, as imagens da ação policial contra as manifestações testemunham as convulsões de um sistema de ensino que, segundo os estudantes, tem o seu acesso "filtrado" também pela divisão de castas.
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Tudo isto chega-nos através de uma intensidade material, porventura ampliada pela crueza informativa das imagens a preto e branco (há apenas algumas transições a cores), que, paradoxalmente ou não, vai adquirindo a beleza contida de uma metódica deambulação poética. Noite Incerta é mesmo um filme capaz de nos relembrar que a pulsão documental não se confunde com os clichés da atualidade televisiva (quase sempre sustentados por uma voz off "exterior" e "superior" à complexidade dos acontecimentos). O que mais conta são os contrastes de uma narrativa que não desiste de se envolver com os sinais e enigmas das trocas humanas - em resumo, uma das grandes estreias de 2022.
dnot@dn.pt
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