Há um silêncio incómodo em torno de C.B. Strike: Troubled Blood e não é de agora. Recordemos: este foi o livro que gerou controvérsia aquando do seu lançamento, em 2020, por supostamente revelar sinais de transfobia da autora J.K. Rowling (que assina os policiais Cormoran Strike com o pseudónimo Robert Galbraith). A polémica desencadeou-se através de uma crítica do jornalista Jake Kerridge, do The Telegraph, que resumia esse quinto romance da série na frase incendiária "nunca confiar num homem com um vestido", em alusão a uma personagem secundária que seria, na sua interpretação, um serial killer travesti. Na altura, outros críticos, nomeadamente do The Guardian, vieram contestar tal comentário apontando para o que seria uma leitura superficial do livro. Mas uma vez levantada a suspeita nas redes sociais, já não dava para apagar o fogo de reprovação pública à volta do nome da escritora....Em novembro do último ano foi a vez da colunista E.J. Rosetta, dedicada aos temas LGBT, escrever no Twitter que, ao fim de três meses de pesquisa, a ler a obra e as entrevistas da autora britânica de fio a pavio, não encontrou "uma única citação transfóbica de JK Rowling que resista ao escrutínio jornalístico. O abuso que sofreu está para além do perdão." Mas nada do que agora se escreva de positivo produz efeito mediático; as polémicas têm essa característica de se alimentarem do que é potencialmente negativo, e não do contrário. Tanto assim é que Rowling já só surge como notícia por algum tweet que possa corroborar a sua alegada transfobia..Esclarecida a razão da "falta de interesse" que envolve a estreia da terceira temporada de uma excelente série policial britânica chamada C.B. Strike - cujo livro se encontra editado em Portugal com o título Sangue Turvo (Editorial Presença) -, podemos prosseguir com o motivo deste texto, que é o regresso ao pequeno ecrã do detetive Cormoran Strike e da sua assistente Robin Ellacott, essa dupla perfeita interpretada por Tom Burke e Holliday Grainger, que funciona pelo mútuo contraste. Para quem não está familiarizado, Strike é um veterano da guerra do Afeganistão com stress pós-traumático, uma perna amputada e um semblante quase sempre impermeável a emoções fortes; alguém que resolve as tormentas interiores com um copito a mais e um cigarro noturno. Já Robin, o anjo em forma de mulher que chegou para ajudar este detetive sorumbático, é uma profissional entusiasta, que pesquisa à velocidade da luz e aprecia a adrenalina do risco; alguém que não tem problemas em usar os dotes camaleónicos para assumir personagens que ajudem a acelerar o processo de investigação..Entre ambos há uma química no campo de trabalho que é indissociável da tensão física, como se fossem dois corpos a retardar as consequências da atração, entretendo-se com casos alheios ao seu caso-não-resolvido, que lhes permite, pelo menos, passar a maior parte do tempo juntos. Enfim, "entreter" não será a palavra mais justa, já que a nuvem romântica que paira sobre os protagonistas não suga a energia dos atos de investigação. Deparamos aqui com o melhor de dois mundos, em amena convivência: sugestão amorosa e eloquência detetivesca..Depois de Lethal White, temporada que retrata o caso de um jovem assombrado com o testemunho de um assassinato em criança, Troubled Blood vai mais fundo no tipo de história que entrelaça o passado com os dramas do presente. Strike está na Cornualha, em visita a uma tia com doença terminal, quando é abordado na rua por uma mulher que lhe pede um minuto de atenção. Ela não vem em súplica por nada que tenha acabado de acontecer, nem sequer tem muitas esperanças de conseguir despertar o interesse do detetive privado, mas ainda assim expõe o caso: a sua mãe desapareceu em 1974, em circunstâncias nunca esclarecidas, e o assunto foi arquivado tanto pela polícia como pelo próprio pai. É apenas uma mulher à procura de respostas que lhe permitam arrumar, de alguma maneira, a memória da mãe (era uma bebé quando esta desapareceu) e fechar um capítulo suspenso..Com o início desta investigação de um cold case vem o mergulho algo perturbador nas águas desses anos 1970 em Londres, através de flashbacks que desenham o perfil da desaparecida, Margot Bamborough, uma médica feminista e socialmente ativa que numa noite deixou o consultório em direção ao pub, onde tinha um encontro marcado, e nunca mais foi vista... A primeira pesquisa de internet de Robin aponta para um sequestrador e assassino de mulheres da época, o suspeito óbvio, mas claro que é tudo mais complexo do que se apresenta nas evidências iniciais..Um dos pontos fortes de C.B. Strike continua a ser o modo como permite ao espectador seguir as pistas num domínio prático e humano, sem que os detetives representem uma inteligência transcendente. No fundo, Strike e Robin "só" apontam as lanternas para as hipóteses lógicas, numa dinâmica que oscila entre conversas de gabinete e entrevistas com velhinhas afáveis que servem chá e bolachas. Isto ao mesmo tempo que cada um lida com problemas pessoais. Ele tem a madrasta (a tal tia da Cornualha) a morrer; ela está à beira de assinar o divórcio. Pelo meio, é Natal..Longe da magia de Hogwarts e profundamente comprometida com uma sabedoria analógica, a série que corre o risco de ser ignorada está entre o melhor da BBC dos últimos anos (por cá disponível na HBO Max), fiel a um classicismo do género policial que se reflete em algo mais do que a ideia de um objeto discípulo da tradição. Desde logo, na sua economia de demonstrações de afeto entre o par heroico, a série cresce em volume emocional a cada gesto contido que vai aproximando Strike e Robin, como dois amantes com um destino definido em câmara lenta. Quem entra na doce bolha de inverno destes dois, em vez de ficar à porta das polémicas vãs, será recompensado pela escolha..dnot@dn.pt