'Carnage', a banda sonora perfeita de Nick Cave para uma "catástrofe coletiva"
Há muito que o estatuto de Nick Cave foi elevado a uma espécie de santidade, levando-o a ocupar no Olimpo da música popular e por direito próprio, sublinhe-se, o lugar deixado vago por nomes como Leonard Cohen ou Lou Reed. Um percurso redentor, tão do agrado da mitologia do rock and roll, iniciado nos sujos tempos do punk e da heroína, quando esse mesmo rock and roll ainda era mesmo sujo e perigoso, com várias subidas ao céu e outras tantas descidas ao inferno, exemplarmente condensadas na sua música, entretanto transformada em salmos por uma cada vez maior multidão de fãs, como a que, em 2018, debaixo de uma tempestade, assistiu, comovida e ensopada, à última liturgia em Portugal do pregador australiano, no festival Primavera Sound do Porto. Não é portanto de estranhar que o lançamento surpresa de Carnage, dado est quinta-feir a conhecer ao mundo, possa ser já considerado um dos acontecimentos do ano em termos de edições discográficas - por tudo isto, mas especialmente pelas canções.
Composto e gravado em apenas semanas, Carnage é descrito pelo próprio Nick Cave como "um disco brutal, assente numa catástrofe comunitária", a pandemia, "mas ao mesmo tempo também belo". É também o primeiro álbum a meias com Warren Ellis, companheiro de longa data nos Bad Seeds e nos Grinderman, com quem já assinara diversas bandas sonoras para teatro e cinema. A ideia, quando se juntaram, em pleno confinamento, para umas sessões de estúdio, não passava por fazer um disco, mas apenas por tocarem juntos, para ajudar a passar o tempo. "Foi um processo acelerado de intensa criatividade", afirma Ellis, revelando que as oito músicas que compõem o disco surgiram logo "nos primeiros dois dias e meio", levando-os, logo aí, a tomar a decisão de gravar um álbum. "Foi um presente caído do céu", concorda Cave.
Segundo os autores, Carnage representa assim uma continuação do processo de trabalho, também ele muito baseado no elemento-surpresa de duas pessoas a improvisar em estúdio, já usado no álbum anterior de Nick Cave and the Bad Seeds, Ghosteen, editado em 2019, ainda na ressaca da morte do filho do cantor, Arthur, em 2015, com apenas 15 anos, na sequência de uma queda junto a um penhasco. O luto encontra-se agora muito mais diluído, num disco em que as letras têm muito mais a ver com a própria pandemia, ainda que indiretamente. Os primeiros esboços começaram a tomar forma logo no início do primeiro confinamento, que Cave passou "a ler e a escrever compulsivamente, sentado na varanda, a pensar nas coisas" - a varanda é aliás mencionada de forma recorrente em Carnage, cuja última faixa tem precisamente o título de Balcony Man. O resultado disto tudo é um álbum "mais inquieto e virado para fora", em que cada canção parece querer alargar ainda mais as fronteiras musicais do já si tão expandido universo caveiano.
Aos primeiros acordes, Hand of God, a faixa que abre o disco, soa a uma típica canção de Nick Cave, com o a voz, apenas acompanhada ao piano, a declamar um verso de cariz algo religioso ("There are some people trying to find out who, There are some people trying to find out why, There are some people aren"t trying to find anything but that kingdom in the sky"). Quase de imediato, porém, a introdução de uma rápida batida eletrónica cria um elemento estranho, enviando a música numa direção contrária ao esperado, criando uma sensação de desespero contido, sublinhada pelos coros de Warren Ellis.
A mesma eletrónica, cada vez mais negra, volta a marcar o ritmo de Old Times, uma canção circular, hipnótica e urgente, que fala de tempos passados, agora de novo regressados, de sonhos desfeitos e separações por entre enviesadas declarações de amor - "Like the old days i"m not coming back this time, Like the old times, Like old times, Wherever you are, darling, I"m not that far behind".
Segue-se a melancólica Carnage, uma quase redenção sob a forma de uma canção de amor, talvez autobiográfica, com um disfarçado sentido de esperança: "it"s only love with a little bit of rain and i hope to see you again".
Já o tema seguinte, White Elephant, é talvez o mais identificável com os estranhos tempos atuais, por entre referências a "manifestantes ajoelhados no pescoço de uma estátua", ameaças de tiros na cara, conspirações e outras tiradas menos literais, numa aparente raiva, inicialmente contida, mas depois sempre em crescendo, que no final acaba por se transformar num hino religioso, no qual é retomado o conceito inicial: "Don"t ask who, Don"t ask why, There"s a kingdom in the sky, We"re all coming home for a while".
Em Alburqueque volta a revelar-se o bom velho Nick Cave de outros tempos, com uma balada clássica, embalada pelo piano, pelas cordas e pelos coros, cuja letra soa também como uma metáfora sobre as consequências da pandemia: "And we won"t get to anywhere, darling, anytime this year. And we won"t get to anywhere, baby, unless I dream you there".
Igualmente clássica é a contemplativa e nostálgica Lavender Fields, outra letra plena de metáforas pessoais, regressando, nos coros, quase como um mantra, a mesma ideia anterior: "Where did they go? Where did they hide? We don"t ask who, we don"t ask why, there is a kingdom in the sky".
Com o aproximar do fim do álbum, Shattered Ground dá lugar a uma melancolia só possível de alcançar através do amor entre duas pessoas apaixonadas, numa canção de esperança, apesar do desencanto, das despedidas, da solidão e do inevitável adeus. A mesma esperança, agora cada vez mais óbvia, apesar de embrulhada num sem fim de metáforas, que se volta a sentir em Balcony Man, a última faixa de Carnage, novamente por entre piano e cordas e coros angelicais, porque, afinal, "o que não te mata apenas te torna mais louco" - e, no caso de Nick Cave, certamente também genial