Cannes: Tom Cruise não desiste de salvar o cinema

Cannes: Tom Cruise não desiste de salvar o cinema

Missão Impossível - O Ajuste de Contas Final cumpriu as melhores expectativas: as aventuras de Ethan Hunt, o agente secreto interpretado por Tom Cruise, continuam a celebrar o grande espectáculo.
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Aos 62 anos de idade, Tom Cruise faz parte da aristocracia do Festival de Cannes. O título pode chocar os mais sensíveis à “luta de classes” que se vive (também) dentro do cinema, mas convém esclarecer que a sua condição aristocrata se enraíza num festivo paradoxo, já que tem como fundamento uma espetacular dimensão popular. Assim, para lá dos méritos dos títulos que concorrem para a Palma de Ouro (e já vimos o admirável Two Prosecutors, de Sergie Loznitsa), a apresentação de Missão Impossível - O Ajuste de Contas Final, extracompetição, era um grande acontecimento antecipado e, por isso mesmo, muito aguardado.

Digamos que valeu a pena esperar. Estas “contas finais” poderão ser, ou não, o derradeiro título de Missão Impossível com Tom Cruise — o ator e o realizador, Christopher McQuarrie, têm tido o cuidado de não dizer nada de muito explícito a propósito de tal hipótese. O certo é que correspondem a uma espécie de balanço temático, mitológico e também afetivo de uma série que começou em 1996, com a primeira interpretação do agente Ethan Hunt por Cruise (o filme chamava-se apenas Missão Impossível), sob a sofisticada direção de Brian De Palma.

Retomando as pontas soltas do filme anterior (Ajuste de Contas – Parte I, 2023), a nova aventura coloca Hunt e a sua equipa face a uma entidade enigmática, sem rosto, que ameaça tomar conta do planeta Terra... Para que não haja confusões sobre os seus perigos e a sua irredutibilidade, dá pelo nome de “The Entity”.

Por um lado, assistimos ao reforço de uma componente dramática inerente a todo este universo. A saber: a evolução tecnológica gerou um mundo de circuitos interligados, muitas vezes sem conhecimento dos que neles estão integrados, a ponto de todas as formas de poder estarem virtualmente contaminadas por perversas contradições. Por outro lado, existe Ethan Hunt, quer dizer, um ser humano que Cruise interpreta de modo realmente físico (será preciso lembrar que, na maior parte das cenas de ação, ele é o seu próprio duplo?), nomeadamente numa sequência, literalmente arfante, de 20 minutos debaixo de água, além do duelo final que, com algum lirismo, podemos descrever como um bailado de avionetas.

Para os espetadores que, tal como autor deste texto, descobriram no seu próprio tempo a Missão Impossível original (série televisiva de que se produziram 171 episódios no período 1966-1973), há um sabor nostálgico nesta Missão Impossível - O Ajuste de Contas Final que, ironicamente, reforça o seu espírito ecuménico. Neste universo de fábula tecnológica, Ethan Hunt e os seus companheiros do IMF (Impossible Missions Force) possuem, de facto, a vocação “bíblica” de anjos da guarda que vivem fora da história comum, embora trabalhando para que essa história não tenha um fim trágico.

Tecnologia & drama

Dir-se-á que todo este aparato dramático (os “bons” contra os “maus” que querem destruir o mundo...) é o mesmo de muitos filmes de super-heróis que têm proliferado nas últimas décadas, cada vez com resultados menos interessantes. Assim será, mas com uma diferença que está longe de ser banal. Na verdade, muitos desses filmes passaram a existir como rotineiros produtos de marketing concretizados por equipas de efeitos mais ou menos especiais. Por contraste, Cruise e McQuarrie (que são também produtores) não abdicam de praticar um conceito de espetáculo — como é óbvio, também apoiado em impressionantes recursos técnicos — em que o arrebatamento prometido por cada situação nasce, não da ostentação tecnológica, mas do gosto pelas convulsões da narrativa cinematográfica.

Aliás, evitando favorecer os maniqueísmos de algum jornalismo de raiz televisiva, importa recordar que a filmografia de Cruise, para lá dos chamados “filmes de ação”, inclui momentos invulgares e desafiantes que vão desde A Cor do Dinheiro (Martin Scorsese, 1986) e Rain Man (Barry Levinson, 1988), contracenando com Paul Newman e Dustin Hoffman, respetivamente, até à vibração dramática de Magnólia (Paul Thomas Anderson, 1999).

Em 2023, por altura dos Óscares e na sequência do sucesso de Top Gun: Maverick (que também passou por Cannes, em maio de 2022), Steven Spielberg agradeceu publicamente a Cruise o facto de ele ter salvado Hollywood e, mais do que isso, “a distribuição dos filmes nas salas”. Talvez resida aí um elemento chave da sua força simbólica: enquanto Ethan Hunt salva o mundo, Cruise não desiste de salvar o cinema — e o prazer dos espetadores.

João Lopes, em Cannes

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