Como diziam os autores da Nova Vaga francesa, em particular assumindo a herança de Roberto Rossellini, convém não nos esquecermos dos italianos... O Festival de Cannes nunca se esquece e, este ano, são três as produções de Itália que concorrem para a Palma de Ouro. La Chimera, de Alice Rohrwacher, surgirá amanhã. Entretanto, já pudemos descobrir os outros dois títulos, ambos admiráveis: Rapito, de Marco Bellocchio, e Il Sol dell"Avvenire, de Nanni Moretti..Bellocchio tem 83 anos, Moretti 69. Enfim, a idade não é um posto, mas acontece que ambos possuem filmografias longas e multifacetadas, movidas por temas e obsessões que se renovam e, de algum modo, se vão questionando. São, sobretudo, cineastas em cujo labor a história de Itália ecoa de modo muito directo, de acordo com um exigência ética e estética em que a precisão dos factos coexiste com a fascinante imaginação que a ficção pode conter..Rapito (à letra: "Raptado") projecta-nos em 1858, recordando a história verídica de Edgardo Mortara, um menino de seis anos de uma família judaica de Bolonha, à época um dos Estados Papais. Sem que os pais o soubessem, Edgardo tinha sido baptizado, levando a Igreja Católica a sequestrá-lo, usando como fundamento um princípio segundo o qual as crianças católicas não podiam ser educadas por famílias de outras crenças. Apesar de todas as tentativas da família para recuperar a criança, o "caso Mortara" foi gerido por Pio IX como um exemplo modelar dos valores da Santa Sé - até que se dá o Risorgimento, unificando a Itália em 1861....Não estamos perante um mero inventário de factos e "reconstituições", à maneira de muitos filmes e séries que continuam a sustentar a oferta das plataformas de streaming. Tal como acontece em Vencer (2009), sobre Benito Mussolini, ou na recente série Esterno Notte (2022), sobre o rapto de Aldo Moro, Bellocchio assume-se como um narrador trágico, explorando as singularidades de cada personagem (o retrato de Pio IX escapa a qualquer lugar-comum religioso ou dramático), para através delas nos apresentar uma visão monumental da história colectiva. A esse propósito, vale a pena lembrar que a acção de Rapito pertence, não aos mesmos lugares, mas à mesma conjuntura de O Leopardo (o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e o filme de Luchino Visconti, surgidos em 1958 e 1963, respectivamente)..Com Il Sol dell"Avvenire (que talvez se possa intitular entre nós "O Futuro Radioso"), Moretti revisita a história do Partido Comunista italiano, mas não através de uma tradicional memória histórica. Ele próprio interpreta a personagem de Giovanni, um cineasta que está a rodar um filme sobre uma célula do PC, em meados da década de 1950. Quando se dá a Revolução Húngara de 1956 e o seu brutal esmagamento pela URSS, trata-se de saber se os comunistas italianos se vão manter fiéis aos ideais de liberdade que proclamam, demarcando-se da violência das forças militares soviéticas....Aliás, este resumo é demasiado esquemático, quanto mais não seja porque Moretti constrói um painel de acontecimentos em que o presente se cruza com as memórias retratadas (no filme dentro do filme), sendo ao mesmo tempo contaminado pelo desejo de Giovanni realizar um filme musical. Il Sol dell"Avvenire acaba por se impor como um objecto de desconcertante ligeireza poética, por vezes irresistivelmente cómico, reafirmando Moretti como um dos mais talentosos herdeiros dos clássicos italianos.