Milo Machado-Graner: ser ou não ser espectador, eis a questão
Milo Machado-Graner: ser ou não ser espectador, eis a questãoD.R.

Cannes celebra os espectadores de cinema

As secções paralelas do Festival de Cannes continuam a revelar alguns filmes excelentes: com o seu 'Spectateurs!', o francês Arnaud Desplechin celebra as nossas viagens pelo mundo plural das imagens e dos sons.
Publicado a
Atualizado a

Quando fizermos o balanço da 77ª edição do Festival de Cannes (o palmarés será conhecido amanhã, ao fim da tarde), será inevitável reconhecer que, direta ou indirectamente, em termos lineares ou simbólicos, vários cineastas estão a questionar-se sobre o momento histórico do cinema e o labirinto das suas linguagens — a começar, claro, por Francis Ford Coppola, com o seu monumental Megalopolis. Num tom bem diferente, deparámos com a mesma vontade especulativa e introspetiva, através do mais recente filme do francês Arnaud Desplechin: chama-se Spectateurs! e passou na selecção oficial, extra-competição, numa das chamadas “sessões especiais”.

O título envolve uma mensagem que convém não simplificar. De facto, o ponto de exclamação está longe de ser meramente retórico: trata-se de revisitar o cinema através dos espectadores, ou melhor, do desejo de ser espectador. Em termos esquemáticos, poderemos dizer que Desplechin se aventura numa daquelas narrativas em que documentário e ficção se enlaçam, em particular através de um leque de evocações cinéfilas que vão desde os seus próprios filmes até momentos emblemáticos de títulos como Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut, ou A Idade da Inocência (1993), de Martin Scorsese.

Em qualquer caso, entenda-se, não estamos perante uma banal antologia de referências, capazes, por si, de definir aquilo que seria um “ponto de vista” sobre a história do cinema. Claro que, à sua maneira, Desplechin tem também qualquer coisa de historiador e crítico de cinema, mas o essencial joga-se na evocação — e, sobretudo, na actualização — de um conceito herdado do classicismo. A saber: sentarmo-nos numa sala de cinema, perante um ecrã, envolvidos pelos sons de um filme, não é assistirmos a um monótono desenrolar de peripécias que podem ser condensadas numa sinopse.

O que mais conta é a sensação, porventura a utopia, de descobrirmos algo que, mesmo quando parece esgotar-se na “reprodução” do mundo à nossa volta, amplia, enriquece e, de algum modo, questiona esse mesmo mundo — a ponto de nos levar a perguntar não apenas como representamos a nossa vida, mas também o que é o nosso viver. Para essa viagem de inusitadas maravilhas, Desplechin conta com vários actores, incluindo Mathieu Amalric, Françoise Lebrun e o jovem francês, de ascendência portuguesa, Milo Machado-Graner, que descobrimos também em Cannes, em Anatomia de uma Queda, Palma de Ouro de 2023.

Reencontro com Demy

Quem também não é estranha a estas movimentações cinéfilas é a realizadora francesa Florence Platarets. O ano passado já tinha marcado presença na secção de Clássicos de Cannes, com Godard par Godard, uma magnífica evocação do autor de Pedro, o Louco. Regressou agora, na mesma secção, com Jacques Demy, le Rose et le Noir.

Prevalece a mesma lógica didáctica de revisitação da filmografia do cineasta abordado — Jacques Demy (1931-1990) —, sublinhando em particular a sua condição de criador de um certo tipo de musical, “à la française” (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, de 1964, surgiu também numa cópia restaurada). Mais do que isso: o novo documentário consegue construir algo próximo de um auto-retrato, com muitas declarações de Demy, algumas inéditas.

João Lopes, em Cannes

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt