Há um cliché que sempre reaparece quando se fala do “tom” (dramático, ligeiro, etc.) dominante num festival de cinema: os filmes apresentados seriam o reflexo das muitas convulsões do mundo em que foram gerados. No caso da 78ª edição de Cannes, o cliché, convenhamos, não deixa de ter alguma pertinência, de tal modo proliferam filmes que ecoam os mais diversos conflitos do nosso presente. Talvez seja por isso que (quase) ninguém fala da trágica serenidade de A Pale View of Hills, de Kei Ichikawa, belíssima adaptação do romance homónimo de Kazuo Ishiguro. Na secção de ante-estreias, o objecto mais emblemático desse estado de coisas será Orwell: 2+2=5, documentário de Raoul Peck sobre George Orwell (1903-1950) e, em particular, o seu romance distópico 1984. Evocam-se os muitos escritos de Orwell, sem dúvida atualíssimos, sobre o nascimento, a consolidação e os métodos dos sistemas ditatoriais, com Peck a propor um sistemático contraponto com cenários actuais (Ucrânia, Gaza, etc.). Os materiais documentais a que teve acesso são, de facto, impressionantes; ao mesmo tempo, há no projeto qualquer coisa de fácil e esquemático, como se Orwell: 2+2=5 fosse uma extensão de uma montagem superficial e “acelerada” para usar num banal noticiário televisivo... Seja como for, não esqueçamos que, na trajetória de Peck, encontramos um título como Eu Não Sou o Teu Negro (2016), sobre James Baldwin, bem diferente no pensamento e na estrutura narrativa. . Se os filmes podem reflectir a confusão dos tempos, isso não parece ser uma boa razão para fazer filmes... confusos. Na competição, no caso de Alpha, de Julia Ducournau, assistimos ao consumar de um processo de ascensão e queda de uma cineasta que, graças a Titane (Palma de Ouro de 2021), tinha, pelo menos, afirmado um universo próprio, a meio caminho entre um certo cinema de terror e a agilidade dos telediscos — a sua primeira longa-metragem, Raw (2016), será o melhor exemplo. Agora, a história de Alpha (Mélissa Borros), uma menina de 13 anos enredada numa espiral de drogas e violência, com ameaça de epidemia em pano de fundo, não passa de (mais) uma variação medíocre sobre a moda do “body horror” — razão tem David Cronenberg para rejeitar esse rótulo quando aplicado aos seus filmes... Bem diferente é Eagles of the Republic, de Tarik Saleh, cineasta sueco de ascendência egípcia que, de forma eminentemente crítica, continua a abordar o universo político e cultural do Egipto (o seu título anterior, A Conspiração do Cairo, ganhou o prémio de melhor argumento em Cannes/2022). Neste caso, a história de uma conspiração para assassinar o Presidente Al-Sissi é tanto mais perturbante quanto no seu centro está um actor muito popular (interpretado pelo magnífico Fares Fares) que, por pressão profissional, se vê envolvido nessa conspiração. Resumindo, Saleh sabe desmontar a proximidade visceral, por vezes irremediavelmente perversa, entre “arte” e “política”. Notícias do Brasil De forma impressionista, não será exagero dizer que a maioria dos jornalistas que acompanham o festival acredita que o filme brasileiro O Agente Secreto tem um lugar garantido no palmarés. Estamos perante uma evocação da ditadura militar brasileira no ano de 1977, com argumento e realização de Kleber Mendonça Filho, autor, por exemplo, de Aquarius (2016), com Sónia Braga. No seu centro está um engenheiro, interpretado por Wagner Moura, cujo passado político faz dele um alvo a abater pelo regime — ao tentar regressar à sua cidade natal, levando uma existência discreta, irá perceber que os perigos espreitam, literalmente, em cada esquina. O filme sofre de claras limitações de argumento, nomeadamente na articulação das duas épocas (separadas por algumas décadas) em que decorre a acção — há mesmo personagens e situações que justificariam outro desenvolvimento dramático, até mesmo para esclarecer o complexo contexto político em que tudo acontece. Seja como for, O Agente Secreto surge em Cannes como bandeira cinéfila de uma produção apostada numa crescente globalização. Expressão clara disso mesmo é o facto de, este ano, o Brasil ser o centro temático do Mercado do Filme. Como é dito na apresentação oficial, trata-se de “dar a conhecer a riqueza da sua indústria audiovisual, os seus invulgares talentos criativos e o seu empenhamento em favor da colaboração internacional”. .A Nova Vaga renasce em Cannes .Dois filmes das margens