Num mundo saturado de cinema ao serviço das retóricas do politicamente correto, será que nos resta alguma disponibilidade e energia para lidarmos com os filmes que desafiam lugares-comuns, resistindo a serem encerrados numa categoria convencional? Atentemos no exemplo de Bugonia (a partir de amanhã nas salas escuras), uma bela confirmação do gosto heterodoxo do grego Yorgos Lanthimos. Convenhamos que, mesmo com resultados nem sempre equilibrados, cada um dos seus filmes possui esse toque de ambiguidade e ironia que faz com que não seja possível encaixá-lo em narrativas ou códigos preestabelecidos - de Canino (2009) a Histórias de Bondade (2024), passando por A Favorita (2018) ou Pobres Criaturas (2023).A estranheza de Bugonia começa no seu título. As enciclopédias explicam-nos que se trata de uma palavra grega, ou melhor, das culturas ancestrais do Mediterrâneo, designando uma crença (pouco) científica. A saber: as abelhas nasceriam, por geração “espontânea”, a partir da carcaça de um boi ou outro animal morto num sacrifício ritualizado. Diz a lenda que Aristeu, um apicultor, refez assim as colmeias que tinha perdido...Com simbolismo mais ou menos adequado, começamos por descobrir Teddy (Jesse Plemons), proprietário de uma coleção de colmeias que trata com desvelo e inquietação. Tem a companhia do ingénuo Don (Aidan Delbis), aparentemente de muito limitada inteligência. São duas criaturas solitárias no meio de uma floresta que, em boa verdade, não prometem uma história muito agitada... O certo é que, perante a curiosidade infantil de Don, Teddy está a trabalhar num plano arriscado: nada mais nada menos que raptar Michelle Fuller (Emma Stone), CEO de uma grande companhia farmacêutica. .Porque é que dois pobres diabos se lançam em tão caricata odisseia? Pois bem, Teddy é um genuíno e hiper-informado investigador. Estuda os mistérios do cosmos, tem o seu computador recheado de informações sobre as civilizações alienígenas, e chegou à conclusão que Michelle provém de uma galáxia a que ele próprio deu o nome de “Andrómeda”. Enfim, Michelle e os seus pares (há mais, claro...) vivem disfarçados entre nós com o objetivo de destruir o planeta Terra. Vale a pena lembrar que Bugonia se inspira numa premissa idêntica, na base de uma comédia sul-coreana, Save the Green Planet!, lançada em 2003 (inédita no mercado português).Mas será que estamos perante uma comédia? É verdade que um humor bizarro, por vezes muito negro, vai contaminando diversas situações, até porque Teddy e Don começam por cortar o cabelo a Michelle (mesmo a sério, não é um efeito digital na cabeça de Emma Stone) para evitar que a sua cabeleira lhe permita contactar a nave que a aguarda... O absurdo que se instala envolve alguns efeitos mais típicos de um certo cinema de terror, com a indefesa Michelle, desesperada por dar provas da sua identidade terráquea, a tentar preservar a racionalidade que lhe permita lidar com a agressão de que está a ser alvo.. De tudo isto resulta um filme que nos devolve o prazer primitivo da arte de contar histórias. Comédia negra, saga de ficção científica ou fábula sobre as fronteiras da identidade humana, Bugonia será um pouco de tudo isso, sem nunca deixar de ser um exercício insólito, com o seu quê de volúpia, em que cada cena relança o seu próprio enigma para reforçar o enigma da cena seguinte.“Era uma vez...”Há em Bugonia o espírito arcaico de uma sensualidade cinematográfica e também, por certo, literária que começa na possibilidade de refazer (ou reescrever) as aparências do mundo: “Era uma vez...” Tal dimensão é tanto mais forte e fascinante quanto Lanthimos se está completamente nas tintas para “acelerar” as peripécias físicas da sua história, com nota elevada para o argumento de Will Tracy (do lote de argumentistas da série Succession). Este é mesmo um filme que, no essencial, resulta de conversas sobre o delírio físico e metafísico em que todas as personagens estão envolvidas.Escusado será dizer que Bugonia ecoa os dramas, as tragédias e também o humor destes tempos de discussão da verdade como componente ameaçada de todas as formas de comunicação. Mas não é, nem de longe nem de perto, um filme de “tese”, antes um objeto que tem tanto da ligeireza de uma balada pop como da pompa de uma ópera - escute-se, a esse propósito, a notável banda sonora original de Jerskin Fendrix..Olhares do Mediterrâneo, o festival da resistência feminina