Buchholz. Uma livraria com história que procura trazer de volta o seu ADN
Na placa à entrada lê-se “Livraria Buchholz. Galeria de Arte. Música Clássica e Folclórica”. E é nessas várias vertentes que a Leya está a apostar para o futuro da livraria fundada há mais de 80 anos e que agora juntou à sua longa história a designação oficial de “Loja com História”, atribuída pela Câmara de Lisboa. “Este projeto é um reposicionar a Buchholz enquanto livraria, mas também ponto de encontro da cultura - na literatura, nas artes e na música”, explica Maria Garcia. A diretora de Novos Negócios do Grupo LeYa, que em 2009 adquiriu a livraria e lhe procura devolver o esplendor original, insiste: “É este ADN que nós queremos trazer de volta. É um voltar às origens, porque essas vertentes foram muito fortes nos anos 60 e 70 aqui na Buchholz, mas depois esmoreceu tudo.”
A conversa decorre no piso superior dos três que a livraria ocupa na Rua Duque de Palmela, para onde se mudou em 1965, mais de 20 anos depois de ter aberto portas, em julho de 1943, no n.º 50 da Avenida da Liberdade. Tudo começou com Karl Buchholz, um alemão nascido em 1901 em Göttingen, mas educado por uma tia em Frankfurt. No início dos anos 1920 Karl chega a Berlim à procura de trabalho como livreiro. E não demorará a alcançar o sucesso. Ousado, o jovem Buchholz abre a sua primeira livraria apenas quatro anos depois de chegar à capital alemã. Mas esta é bombardeada durante a II Guerra Mundial e o livreiro decide mudar-se para Lisboa e abrir uma livraria. Ao vender livros proibidos tanto pelos nazis como pelo Estado Novo, esta atrai uma clientela em que à elite lisboeta se juntavam, na época, refugiados e espiões de passagem pela capital portuguesa. Além de livros em línguas estrangeiras, Karl Buchholz negociava na clandestinidade “arte degenerada”, como era chamada pelos nazis. Esta sua atividade só nos últimos anos foi conhecida, graças a uma série de investigações históricas.
Entretanto, Karl Buchholz partiria para a Colômbia, onde abriria mais três de um total de 12 livrarias espalhadas pelo mundo. A gerir a de Lisboa fica Katharina Braun, a quem sucede na década de 1980 Karin Sousa Ferreira, apoiada de perto por Irene Rodrigues. Durante décadas, só trabalharão mulheres na Buchholz. A livraria foi frequentada por grandes nomes que fizeram a história do país, como Mário Soares, Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Marcelo Rebelo de Sousa e Francisco Pinto Balsemão. Na cultura, eram habituais António Lobo Antunes, Cardoso Pires, Al Berto, David Mourão Ferreira, Vergílio Ferreira, Fernando Assis Pacheco, etc.
Parte da história da cidade e do país, foi numa das salas da Buchholz que, nos anos 1980, Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas terão tido a ideia de criar o jornal O Independente. Duas décadas antes, o maestro António Vitorino d’Almeida referia-se muitas vezes à livraria como “a melhor discoteca de Lisboa”.
No piso superior, onde decorre a maior parte dos eventos, como lançamentos de livros, etc, e ainda antes de irmos às novidades e projetos, Maria Garcia começa por uma pequena visita guiada aos “tesouros” da Buchholz. Depois da última remodelação, a livraria passou a exibir as coleções permanentes através das quais procurou “dar aos visitantes algum contexto sobre o processo criativo dos autores”. Apontando para uma vitrina, a diretora de Novos Negócios da Leya explica: “Temos aqui manuscritos do António Lobo Antunes. Uma história engraçada é ele, no processo criativo, escrever com a mão esquerda, e quando sente que o texto está fechado e pronto a ser publicado, passar a limpo com a mão direita. O que faz com que cada um daqueles oito manuscritos pareça ter sido escrito por uma pessoa diferente”
Nas paredes surgem outros objetos ligados a grandes nomes da literatura portuguesa, como a caneta de Lídia Jorge ou um manuscrito de José Saramago. Como era seu apanágio, o texto quase não tem emendas e é acompanhado de um email que o Nobel da Literatura enviou ao editor Zeferino Coelho em 2002 onde se lê: “Caro Zeferino. Aqui vão dois capítulos. Foi o que se pôde arranjar”.
E a máquina de escrever exposta numa outra vitrina? “Esta máquina de escrever era do pai de Isabela Figueiredo e tem um significado emocional muito grande para ela, porque foi aqui, nesta máquina, que ela começou a escrever os seus primeiros textos”. Prosseguindo a visita, e passando aos outros pisos, a responsável da Leya destaca uns óculos pertencentes a Manuel Alegre e, claro, as “cadeiras da Snu”. Encostadas à parede, num patamar da escadaria, encontram-se dois cadeirões de pele castanha que pertenceram a Snu Abecassis, a fundadora da Dom Quixote, que morreu em 1980 no acidente de avião que vitimou também o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, seu companheiro. “Não quisemos fazer propriamente um mural, mas dar destaque à Dom Quixote e à importância que, enquanto editora irreverente e fora da época, desempenharam na história do país. E homenagear a Snu, enquanto fundadora, enquanto mulher, muito nova na altura - tinha 24 anos quando criou a Dom Quixote”, sublinha Maria Garcia, diante das placas que alertam os visitantes para não se sentarem. Além de uma mesinha com um telefone de disco, típico dos anos 70, nas estantes podemos ver algumas das primeiras edições da Dom Quixote, desde os Cadernos até livros sobre Mao Tse-tung ou Karl Marx.
Assim chegamos ao piso de baixo, a uma das salas que mais mudou com a última remodelação da livraria. “Era uma sala onde se vendiam manuais e livros de apoio escolar”, recorda Maria Garcia, descrevendo a anterior decoração como “estilo IKEA”. Hoje as paredes são azuis e as estantes de madeira escura, devolvendo a dignidade àquela que já foi galeria de exposições. “Aqui temos livros de todos os campos das artes. Desde as BDs às novelas gráficas, aos livros de música, cinema, fotografia, design, arquitetura, pintura. Mas também duas novidades, que é a existência de uma discoteca com discos em vinil, em parceria com a Flur Discos”, explica Maria Garcia. A sala tem também sido usada para os concertos de música ao vivo que a Buchholz tem organizado. De entrada gratuita - pelo menos para já - estes eventos procuram aliar o ambiente acolhedor, com a oferta de um copo de vinho, e a boa música.
Loja com História e programação
Para Maria Garcia, o reconhecimento como Loja com História, é “muito relevante”, mesmo sendo a confirmação da “importância que já reconhecíamos à Buchholz, enquanto livraria emblemática da cidade de Lisboa”. “O que isto nos traz é um reforço do compromisso do trabalho em que acreditamos e que temos vindo a fazer, de tentar manter este legado histórico, esta identidade, este património de ligação à cidade de Lisboa”, diz a diretora de Novos Negócios da Leya. E acrescenta: “O que estamos a fazer é levar a Buchholz à vida de mais pessoas, sobretudo junto às novas gerações”. Neste momento o público é sobretudo português, explica. E confessa: “se esta porta estivesse virada para a Avenida Liberdade, faria toda a diferença, ou mesmo para Alexandre Herculano. Esta rua é um beco de saída. Este é um desafio.”
Um dos desafios para 2025 é comunicar de forma mais eficaz. A livraria tem presença no Instagram, mas a Leya está a criar uma página online da Buchholz “com curadoria dos seus livreiros, que são muito experientes, mas também através de todas as pessoas que por aqui passam, por exemplo através dos clubes de leitura ou das conversas. Vai ser a nossa janela de comunicação, uma montra de livros e de pessoas interessantes nas diferentes áreas da cultura, mas onde possamos comunicar com mais agilidade aquilo que estamos a fazer na livraria”.
Maria Garcia destaca, mais uma vez, o Clube de Leitura e a sessão de 12 de março, a propósito do Mês da Poesia que é também o Mês da Mulher. “O tema vai ser mulheres poetas e vamos ter connosco a Raquel Marinho autora do podcast O Poema Ensina a Cair. Vão discutir-se as obras de mulheres poetas portuguesas como Maria Teresa Horta ou Adília Lopes, que partiram recentemente, mas também Sophia de Mello Breyner e muitas outras”.
Na Galeria de Música ao Vivo, a Buchholz tem apostado nos concertos, sobretudo o Jazz em Primeira Mão, em que “os músicos vêm cá apresentar o seu álbum pela primeira vez”, continua Maria Garcia. Um sábado por mês, a Buchholz acolhe ainda uma sessão de histórias cantadas, “uma espécie de hora do conto mas em versão cantada com histórias mais tradicionais, desde o Capuchinho Vermelho, aos Três Porquinhos ao Soldadinho de Chumbo”. E a livraria recebe também sessões de podcasts ao vivo. A ideia, explica a diretora de Novos Negócios da Leya, é “dar a possibilidade às pessoas que seguem um podcast de assistir a determinada conversa sobre um certo tema e depois também abrir o espaço para perguntas”. Isto além de tentarem desenvolver o merchandising, dos Tote Bags, aos lápis, ou das canetas aos caderninhos - “as pessoas adoram. Gostávamos de ter mais diversidade.”