Marguerite Yourcenar é autora dos romances 'Memórias de Adriano' e 'A Obra ao Negro'.
Marguerite Yourcenar é autora dos romances 'Memórias de Adriano' e 'A Obra ao Negro'.DR

Biografia de uma belga que se tornou francesa e depois norte-americana

Cristina Carvalho lançou mais um romance biográfico, sobre uma das autoras mais importantes do século XX: Marguerite Yourcenar. Soma 25 livros, entre os quais 'Fabulário ou o pequeno circo do mundo'.
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O mais recente romance biográfico de Cristina Carvalho intitula-se Marguerite Yourcenar – Liberdade e Paixão e, mesmo sendo a autora belga (1903/1987) muito conhecida, o livro irá surpreender muitos dos seus leitores com a sistematização da vida da escritora e um revelar de situações inesperadas que protagonizou. É o caso da sua eleição para a Academia Francesa de Letras, a primeira mulher a ser admitida desde a fundação em 1635, e que no seu discurso afirmou que "não voltaria à Academia" e assim fez, após referir as outras mulheres que ali deveriam ter tido assento antes de si - como Colette, George Sand ou Madame de Staël. Ou o facto de ter vivido metade da sua vida nos Estados Unidos da América e de ali ter escrito os dois dos seus mais importantes romances: Memórias de Adriano e A Obra ao Negro.

Ao questionar-se Cristina Carvalho se os EUA seriam um lugar mais inspirador do que o velho continente para Yourcenar, a autora considera que a pergunta pode ter uma resposta complexa: "Porque implica diversas ressonâncias; no entanto, de forma resumida, diria que foram escritas nessa América do Norte, na ilha Mount Desert no Estado do Maine, o local onde Marguerite Yourcenar viveu mais de 40 anos com os intervalos das suas viagens. Foi a sua principal morada, o local da sua vida amorosa, da sua atividade intelectual, de leituras e de escrita dos seus livros. Creio que não seria o mais inspirador dos cenários, ainda que fosse o seu ambiente de vida e de grande beleza natural, mas escolheu-o, determinado pelas circunstâncias de um destino inesperado, como todos os destinos."

Insiste-se na situação de uma belga naturalizada francesa preferir a paisagem americana de Mount Desert para viver a última metade da vida e Cristina Carvalho acrescenta: «Provavelmente ainda haverá muito a esclarecer sobre esta questão na medida em que nem tudo ainda é do domínio público. No entanto, responderia que, essa última metade da vida, ainda assim, foram quarenta e tal anos, foi uma escolha e uma decisão por amor a uma pessoa, a sua companheira Grace Frick que era americana. Conheceram-se na Europa, mais exatamente em Paris, mas Grace era professora e tinha de regressar ao seu país. Marguerite ainda ficou algum tempo para trás até consolidar no seu espírito a decisão de viajar até ao Maine e aí se fixar para sempre, decisão ajudada pelo avanço da Segunda Guerra Mundial.»

Cristina Carvalho tem dois novos livros para leitores curiosos.
Cristina Carvalho tem dois novos livros para leitores curiosos.DR

Da leitura deste romance biográfico fica a pergunta sobre a relação de Yourcenar com Grace: terá sido a «resolução mais acertada»? Para Cristina Carvalho, a resposta é: «No caso de Marguerite Yourcenar e tanto quanto se conhece sobre a sua vida, aparentemente, poderá ter sido uma decisão acertada, olhando para as dezenas de anos que viveram em conjunto e quase solitariamente, ela e Grace Frick, num sítio daqueles tão ermo, quase selvagem, longe de vizinhanças – que as havia, no verão e nas magníficas casas de férias de gente muito rica e durante todo o ano os aldeões naturais que lá nasciam e morriam. Sabemos que o mútuo entendimento era precioso e em várias vertentes, desde a alimentação confecionada quase sempre por ambas, cada uma com sua especialidade culinária, os passeios ao longo do lago, as conversas com os pássaros, o amor pelos animais e pelas árvores e pelas plantas até aos interesses muito intensos, muito sábios sobre literatura em geral e sobre as obras da escritora em particular. Grace foi a sua tradutora para inglês e desde sempre a ajudou, organizou e cultivou uma imensa e mútua sabedoria. Por tudo isto esta relação tão longa teve, aparentemente, uma luminosidade de vida harmoniosa e feliz.»  

Seguindo-se Yourcenar a vários protagonistas desta série, pergunta-se a Cristina Carvalho o quão fácil ou difícil é a descoberta de novos biografáveis. Considera que «seria fácil no sentido em que gosto tanto e admiro várias pessoas que “conheço” em áreas diversas, como por exemplo na literatura, no cinema, na pintura, nas explorações científicas que vão desde as “excursões” à Lua como os mergulhos nas profundezas dos mares ou as escaladas aos píncaros das montanhas, como na culinária ou na fotografia… foram pessoas reais, já desaparecidas, cuja existência e obra me têm sido apresentadas ao longo da minha vida. Seria, pois, fácil escolher novos protagonistas para os meus romances biográficos, mas para isso e para continuar a escrever este género de literatura teria de ter agora menos vinte ou trinta anos. Estes livros obrigam a imensa e variada investigação, consulta, visitas, deslocações como todo e qualquer escrito sobre a vida de alguém, seja a clássica biografia, seja o romance biográfico, estilo este que se apresenta mais curto, muito mais condensado e com variações particulares sem nunca distorcer nem “inventar” as realidades dessas vidas».

No caso de Marguerite Yourcenar, a escritora confessa logo no início que optou por destacar a «infância e a tenra adolescência». Explica que o faz em «todos os livros deste género, porque o que me interessa destacar são esses períodos, ou seja, o despertar, o crescer, a evolução na idade e logo no conhecimento, o que se aprende e tudo o que um imaginário tenro virá a reter por toda a vida. Porque a nossa vida começou num dia e os inícios determinam e desenham toda uma futura idiossincrasia». Daí que se queira saber o quanto a obra da escritora belga está modelada pelo local, o Château, onde viveu até aos nove anos: "Essa primeira infância foi muito marcante e reveladora de um futuro e de um psiquismo pouco vulgar. Era uma criança solitária, cresceu num ambiente altamente propício a um desenvolvimento introspetivo e muito interiorizado. O seu maior amigo, nessa altura e pela vida fora, foi o seu pai que a apresentou a toda uma Natureza de maravilhamento, de comunicações invisíveis, de conversas convívios com os animais da quinta, com as árvores, com o tempo invisível que corre com os dias e com as noites. Com quem é que Marguerite conversava sem ser com o pai ou com os animais da sua preferência? Com ninguém. E muito cedo veio a conhecer a arte da leitura, da música, da pintura, dos teatros, essas artes que tudo ensinam a quem quiser dar-lhes atenção e reconhecimento. Foi o que aconteceu com ela quando saiu do Château com o seu pai, finalmente fora das garras, avisos e ralhos da “horrenda” avó Noémie."

Há uma pergunta que foi repetida a Yourcenar ao longo da vida, se a circunstâncias do seu nascimento ser seguido da morte da mãe não a derrotaram para a vida. Segundo a autora "não": "Ela própria afirmou e frisou bem, em variadas e extensas entrevistas, que o facto de não ter conhecido a mãe, nunca lhe foi nem importante nem impeditivo de nada. Fizeram essa pergunta inúmeras vezes e sempre respondeu - Como posso eu amar alguém que nunca conheci?"

A autora deste livro viajou até alguns locais importantes para a biografia de Yourcenar e, diz, «fiz o possível por conhecer e conheci física e geograficamente os seus cantos e domínios: o território francês da Flandres onde hoje, no Mont Noir, existem apenas uns pedregulhos originais provenientes do Château bombardeado e caído na Segunda Guerra Mundial; conheci bem o dito Mont Noir de inesquecível beleza, segredos e mistérios; a aldeia de Saint-Jans-Cappel, onde se situa o Museu Marguerite Yourcenar, a cidade de Bailleul e a cidade de Lille, território avoengo. No caso do museu, que fica situado na rua Marguerite Yourcenar, em Saint-Jans-Cappel na Flandres, é uma casa com três divisões e um corredor de entrada guarnecido, nas paredes de um lado e do outro, de fotografias variadas. Depois, as duas maiores divisões têm estantes com os seus livros e outros; nas paredes, inúmeras fotografias dela própria só e com seu pai, desde a infância até aos seus intensos amores e paixões como, por exemplo e serão somente alguns, Grace Frick, André Fraigneau – aquele que ela tinha amado mais do que a Deus, dizia, – de Lucy Kyriakus e várias fotografias de Jerry Wilson, o seu amante americano 45 anos mais novo do que ela. Na terceira divisão há fotografias, também nas paredes, do dia da sua eleição para a Academia de Letras Francesa, em 1980. É um pequeno museu, mas revela certos pormenores que me ajudaram a compreender algumas particularidades interessantes da vida desta personagem e seus relacionamentos.»

FABULÁRIO. Além deste romance biográfico, Cristina Carvalho publicou recentemente um livro, também, para o leitor mais jovem. Trata-se de Fabulário ou o pequeno circo do mundo, recheado de personagens impossíveis e insólitas: "Não pretende ser nem um conto, nem uma novela, nem um romance, pretende antes apresentar um mundo de fantasia às vezes enlouquecida, às vezes tão realmente séria e compenetrada que dará vontade de rir e quem sabe, vontade de chorar." Pelo Fabulário desfilam porcos, Internet, Verne, Macondo, ou seja, um desnorte de personagens e lugares e, diz a autora, «um retrato do mundo e das suas personagens inacreditáveis, bondosos e enlouquecidos; um mundo dito e descrito por alguém, eu, que como toda a gente, nada conhece. Porque, ao contrário do que se julga, nada se conhece e quem julgar conhecer está, redondamente, enganado. Quem fui, quem sou, quem serei, eu, tu ele, nós, vós, eles, ninguém sabe. As aguarelas magníficas, secretas, naquele desenhar do mestre José Manuel Castanheira são de tal modo inequívocas e sinceras que só por elas, pelas aguarelas-ilustrações vale a pena conhecer este livro.»

MARGUERITE YOURCENAR

Cristina Carvalho

Relógio D’Água

157 páginas

FABULÁRIO

Cristina Carvalho (texto)

e José Manuel Castanheira (ilustração)

Guerra & Paz

112 páginas

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BIOGRAFIA PARA OS 250 ANOS

A bibliografia incluída nas últimas páginas de Jane Austen – Uma Biografia mostra como a autora tem sido estudada, nada que impedisse a autora das biografias de Dickens, Thomas Hardy ou Mary Wollstonecraft, a jornalista e autora Claire Tomalin, de tentar dar a sua visão sobre uma das mais míticas escritoras e que está a comemorar os 250 anos de nascimento. Aliás, as primeiras páginas desta biografia são exatamente sobre essa data, 16 de dezembro de 1775, em que Jane Austen nasceu, com um atraso de um mês em relação ao que a mãe esperava. Logo aí se percebe como os tempos mudaram: "Não lhe passava pela cabeça sair de casa durante pelo menos um mês após o parto."

Claire Tomalin tem uma forma muito própria de deixar este registo biográfico, preocupando-se em fazer o leitor compreender como era a realidade de Jane, da família e dos vizinhos e conhecidos, descrevendo os cenários, os hábitos e as relações, entre todas as particularidades que refletem uma época. Contrariamente ao que a escritora irá fazer notar mais à frente no que respeita ao perfil da escrita de Austen - "nos romances de Jane Austen não há divagações -, Claire Tomalin fá-lo sem preconceito. O que permite que o leitor se reveja nas suas descrições e tenha elementos para entender a biografada. A maneira como utiliza a obra de Austen para exemplificar a sua realidade facilita essa compreensão, bem como dá conta das influências literárias: «Jane lia, escrevia e seguia a sua própria imaginação fora de casa."

O enquadramento numa sociedade de proprietários rurais, aristocratas e famílias de clérigos refaziam o cenário literário próprio de "uma sóbria e imutável sociedade agrícola, espinha dorsal de Inglaterra". De uma opinião generalizada sobre o inigualável Emma não foge Claire Tomalin, mesmo que faça notar que "a sua heroína está longe de ser irrepreensível". Neste romance, como noutros de Austen, tenta explicar a sua origem e método de escrita, bem como as reações.

JANE AUSTEN

Claire Tomalin

Relógio D’Água

379 páginas

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