Depois da biografia sobre o marquês de Pombal, Pedro Sena Lino esclarece a história de um rei que marcou para sempre Portugal.
Depois da biografia sobre o marquês de Pombal, Pedro Sena Lino esclarece a história de um rei que marcou para sempre Portugal.

Biografia de um rei desumanizado e marcado pelo luxo religioso e o lixo da vida íntima

D. João V é a nova investigação de Pedro Sena-Lino após ter redescoberto Marquês de Pombal. Um rei que a História nacional não esqueceu pelo luxo religioso e do lixo da vida íntima.
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Após o sucesso da biografia do Marquês de Pombal, De quase nada a quase rei – Biografia de Sebastião José de Carvalho e Melo, publicada em 2020, Pedro Sena-Lino regressa com outra investigação, desta vez ao antecessor do rei D. José e a um dos monarcas mais exaltados da História nacional: El-Rei Eclipse – Biografia de D. João V. Quando se questiona o biógrafo sobre as principais dificuldades para retratar D. João V, pois foi sempre simplificado, também endeusado, e talvez em muito exagerado na sua abrangência enquanto rei, o autor não tem dúvidas e considera que este seu trabalho tem esse objetivo. Não sem antes reclamar que é um “biógrafo literário” e não o habitual autor deste género.

Aponta a sua intenção como a de “mapear a personalidade do biografado através da narrativa dos seus atos e do impacto das suas decisões e não-decisões, bem como a dos eventos históricos”. Segue-se a esta cartografia, afirma, “a abertura de arcos de compreensão que depois outros poderão explorar”. Não é por acaso que explica o método utilizado: “Em Portugal, parece haver uma ocultação da esfera pessoal do político, que se é mais específica da monarquia não é exclusiva dela. O caso terá começado ou talvez se tenha complexificado com D. João V, que desenvolveu não apenas um sofisticado sistema de representação da autoridade real e da persona régia, mas inclusivamente formas diversificadas de estar presente e de se revelar: embuçado pela cidade fora, crescente à luz fértil das sombras; ou ainda embuçado mas dando a saber que estava presente, mas eclipsado, em lições públicas ou sessões solenes. Também saía de liteira, em atos menos públicos, ou a cavalo com pressa e garbo, ou ainda em coche em sublinhado majestático.”

Acrescenta que a visão por vezes enviesada sobre D. João V já vem de trás, do seu próprio tempo: “O uso do primeiro jornal impresso português, também órgão oficial, Gazeta de Lisboa, para descrever as movimentações piedosas da família real, sobretudo da rainha, correndo entre devoções, reforçam-no. O que quero dizer aos leitores de hoje e de amanhã é que esta separação em várias camadas e esferas levou-nos a ver o homem em funções, o rei pelo brilho. Se esse eclipse do governante o escudou e elevou, rouba porém ao presente as portas da sua personalidade: desumanizou-o. Fomos e somos governados por homens e, antes que as máquinas o façam, urge compreender sem facilitismos as personalidades dos nossos líderes. Nunca vamos resolver problemas sistémicos de conceção, uso e abuso de poder, sem o fazer. Uma biografia de factos desenterra-o e revela-o: é o seu poder mas também o seu dever.”

Será este registo muito próprio a chave do sucesso da anterior biografia sobre o Marquês de Pombal, que já chegou a uma pouco habitual quinta edição neste género de obras. O autor reconhece que foi surpreendido pelo interesse despertado: “Tinha consciência da dimensão incomensurável do Marquês de Pombal na psique lusófona, reforçada pela minha condição de emigrante e vendo-o a partir de fora. Porém, o interesse do livro confirma a sede que o público lusófono tem de conhecer os seus dirigentes e os seus fantasmas.” Não descarta outra ajuda: “Alguns leitores referiram-me o cansaço de tantas biografias romanceadas, que é um híbrido onde um género assassina o outro, comparada com a clarificação que produz uma biografia documentada e factual. Fora esse aspeto, interessam-me muito mais os sucessos a que outros leitores e investigadores poderão aceder a partir das luzes que essa biografia pôde rasgar. O sucesso maior é aquele que uma biografia traz: o alargar de consciência, onde todo e qualquer progresso se funda.”

É impossível não fazer comparações entre a execução dos dois trabalhos e se a investigação para D. João V foi mais complexa do que para Pombal. Explica o processo: “Foi como escavar continuamente e tanto tempo no quase vazio, mas depois desenterrar um maremoto. Tive de parar a investigação ou em vez de a executar, ela executar-me-ia e a biografia ficaria inacabada.” Avança como a desenvolveu: “Centrei-me nos jornais impressos e manuscritos, nas cartas dos embaixadores, em descrições de viajantes, e nas poucas cartas pessoais do rei ou dos seus próximos. Passei igualmente grande parte do tempo a desbravar arquivos, sobretudo franceses e romanos, também ingleses e portugueses, claro, mas estes em menor medida que para a outra biografia. Dois incêndios no Paço da Ribeira e depois o Terramoto destruíram muitos documentos. Em tudo encontrava pequenas referências, sussurros, cacos, sombras entrevistas. Anotava tudo e esses ecos distantes voltavam a aparecer meses, anos depois, noutras referências. Juntas compunham um perfil em puzzle.” 

Uma das forças destas biografias está também nas fontes diplomáticas consultadas: “No caso das francesas, que foram em parte trabalhadas antes por alguns historiadores, fi-lo sistematicamente para períodos-chave do reinado; o mesmo se aplica às fontes do Arquivo Apostólico do Vaticano. Contudo, compulsei também fontes nunca antes trabalhadas em Portugal.” Entre essas fontes estão as cartas de D. Catarina e a viagem do marinheiro sueco Carl Tersmeden, que visitou Lisboa duas vezes na década de 1730 e chegou a conhecer o rei e a família real. Ambas irão dar frutos proximamente, garante: “Preparo uma edição crítica das primeiras e a descrição da viagem do segundo. Este, ao passear por Lisboa na década de 1730, causava espanto, pois Tersmeden, alto e louro, passa pelas ruas e provoca a loucura nas mulheres, que repetem «Jesus, Maria, José». O sueco foi ainda íntimo de vários nobres e do banqueiro do rei.” Um terceiro trabalho está ainda previsto: “Uma edição de narrativas de viagens a Portugal.”

A importância das fontes é realçado pelo prefaciador da biografia, o historiador José Eduardo Franco. Concorda o autor com o título do prefácio, A arte de fazer as fontes falarem? Pedro Sena-Lino começa por definir essa introdução como uma “generosidade” do historiador, a quem Portugal deve muito: “A obra completa do Padre António Vieira, a de Pombal em curso, e de outras séries. É nessa generosidade de visão e de largo intérprete que leio muito grato essas palavras. Como referiu Guilherme D'Oliveira Martins no lançamento do livro no Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras." A seguir esmiúça o seu processo: "Eu vejo o meu trabalho um pouco como o de um artesão cirurgião. Ou se se preferir ser uma espécie de arqueólogo que entretece velhos tecidos, um arqueólogo tecelão que põe esses tecidos a falar, um pouco como Svetlana Alexievich. Se eu pudesse, nem uma vírgula minha acrescentaria a essa tapeçaria sinfónica de vozes de época e de historiadores. Sou um arqueólogo narrador; tendo a procurar fios que estão perdidos para estabelecer nexos, que na perspetiva da linha da vida do biografado ganham uma outra luz que não a perspetiva de um historiador focado noutros aspetos. Porém, redigo-o e reforço-o: não poderia escrever uma biografia destas sem o trabalho incansável e silencioso de centenas de historiadores. O que faço é desentranhar novas perspetivas.” Conclui: “A biografia é uma arte de serviço à consciência coletiva.”

Entre as doutrinas estabelecidas na nossa História sobre D. João V está a de ser a estrela mais brilhante da monarquia portuguesa e que eclipsou os seus antecessores e sucessores. Qual é a sua opinião após esta investigação? O biógrafo responde com o que queria acrescentar ao texto da contracapa do livro: “É um homem desmedidamente reduzido por amplificação.” Elabora um pouco mais: “Todas as reduções escondem algo: D. João lutou pela equivalência de Portugal às grandes potências europeias não apenas em Roma, mas no mais amplo raio da sua ação. A pompa de rei-sol - esse também um simplismo - é para reforçar a autoridade real e escorá-la a partir da religião. Se olharmos para os seus extraordinários embaixadores - D. Luís da Cunha, o Conde de Tarouca, Sebastião José -, e apenas para os seus dois homens de confiança - o secretário de Estado Diogo de Mendonça na primeira parte do reinado, e o Cardeal da Motta, sem título oficializado mas «ministro do Despacho» -, temos um sistema planetário de rara qualidade e preparação.”

Perto do fim do primeiro terço do livro, Pedro Sena-Lino refere que D. João V “queria edificar em livro de pedra uma visão do mundo”. Foi uma renovação da cidade de Lisboa, bem como em parte do país, pensada e reformista ou um devaneio, tal como será visto o seu legado mais polémico, o Convento de Mafra? Recusa a pergunta: “Não, de todo. El-rei arquiteto e edificador tinha uma visão da cidade. Para tal comprou, destruiu, alargou ruas, escarafunchou e descingiu o Paço da Ribeira e a Capela Patriarcal, tornada Basílica. Dividiu Lisboa a meio com a Patriarcal como centro, reforçada pela operática procissão do Corpo de Deus que reinventou, e que desse coração saía. O rei chegou a projetar um enorme palácio para a zona de Alcântara ou de Buenos Aires (Lapa). Quanto a Mafra, como refere António Filipe Pimentel no seu inigualável livro sobre o palácio-convento, Arquitetura e Poder, Mafra é uma conceção do país e do poder em pedra. O rei teve devaneios, emocionais sobretudo, como acontece aos homens que têm de amadurecer depressa. A decisão política é carteada pelas luzes da sua mãe e pelas escarpas do duque de Cadaval e – uma dedução a que não me dei direito na biografia – uma recusa da imagem do pai, D. Pedro II. O que o rei fez em pedra corresponde a uma visão para o país. Faltaram-lhe energias, uma eficaz máquina burocrática e poder de execução.”

O que mais questionar em D. João V: emancipou-se do seu tempo e do atraso português ou apenas foi um gastador das riquezas vindas para o reino e que poderiam ter feito evoluir Portugal? Dá uma explicação biográfica: “É preciso ver que era um miúdo nascido para o trono mas que sobe em escadas de perdas sucessivas: a mãe aos 9, o pai aos 17, a tia Catarina (rainha de Inglaterra) aos 16; até a irmã Teresa com 7 anos (de quem seria próximo e que teria sido Imperatriz). Somem-se às mortes de três irmãos em vida, também as de três filhos. Ou seja, D. João V tem uma consciência do precário tão sólida como a do ouro que vem do outro lado do oceano. É um rei que cresceu em perdas sobe ao trono sem familiares próximos que o guiem, com uma grande guerra europeia dentro do país, complexas e por vezes desorganizadas operações militares nas quais não tinha palavra a dizer. Foi de uma tremenda solidão, crescendo com o peso do mundo às costas. E com um irmão meio doido e violento, D. Francisco, que queria relevância e até o trono. Não podemos esquecer este primeiro obscurecimento, que impediu muitas reformas – e que durou os sete primeiros anos do seu reinado – e o último, da longa doença, de oito anos.”

Sobram quase trinta anos de reinado. Como os avalia? Desenha o perfil: “É quando o rei, com o apoio sereno e respeitador da mulher, e rodeado por competentíssimos ministros e embaixadores, se lançou em reformas. Era um rei de visão e de execução: as 518 toneladas de ouro do Brasil que aportaram a Lisboa - assim o garantem as fontes holandesas - não foram apenas para Roma e para igrejas ou freiras. O rei era um leitor incansável e fez bibliotecas imensas: as de Coimbra, a de Mafra, a das Necessidades e a do Paço. Juntando aos já existentes, desdobrou-se em compra de livros no estrangeiro, de que os franceses troçavam dizendo que os acumulava como um novo-rico, mas vinham reforçar o investimento em instituições, como a Academia Real da História, e ancoravam e ampliavam a nova geração de estudiosos que daí nasceu. É no seu reinado que se imprime o primeiro Dicionário, de Bluteau. Enviou para Roma pintores e músicos; não apenas comprava obras, mas tentava lançar escola em Portugal.” Dá dois exemplos: “Creio que os eclipses no início e no fim do reinado e uma tendência para concentrar em si todo o poder decisório quebraram fluxos pré-iluministas que o futuro marquês de Pombal veio explorar. Os fogos da Inquisição obnubilam ou até apagam a sua larga visão, o seu gesto multiplicador.”

Vale a pena voltar à anterior biografia e avaliar se o marquês de Pombal foi o “sucessor” mais indicado para manter o espírito e a ação de mudança de D. João V? Para Pedro Sena-Lino, em “muitos aspetos, o filho mental de D. João V e de D. Maria Ana não é D. José mas Sebastião José, marquês de Pombal. Aprendendo o custo da neutralidade e os desequilíbrios da balança comercial ao ver as frotas lusas chegar a Londres carregadas de moedas com a efígie de D. João V, e o mundo Habsburgo e também as reformas de Maria Theresa e Joseph II. O programa pombalino não caiu do céu, por mais que tenha sido enxurrado pelo Terramoto: as raízes são joaninas, e muito do modo de execução também”.

O que fica por contar sobre este rei é a pergunta final que se faz ao investigador. Resume: “Citando D. João V, «há infinito que fazer» ainda. Por ora, eu sentia que faltava uma biografia que visse o homem. Quem é ele para além do luxo e do lixo, do luxo religioso e pomposo e do lixo da sua vida íntima? É o filho de um homem velho, D. Pedro, que participou num golpe para depor o irmão rei e que casou com a cunhada. A mãe, uma duquesa alemã trazida por ser fértil, vai agarrar-se ao filho e educá-lo como um príncipe centro-europeu. Daí vem o orgulho do rei e a necessidade de cortar a página com os seus antecessores. Quis compreender isso. Quis também perceber o impacto do seu círculo íntimo na sua personalidade: da relação entre os pais, das linhas cruzadas com os irmãos. Porém, as figuras ainda obscuras dos infantes D. Francisco e D. Manuel, espelhos complexos do irmão, da mulher D. Maria Ana, e até do duque de Cadaval - a chave sombria para o reinado de D. Pedro e para os primeiros difíceis anos de D. João V -, urgem ser exploradas e expandidas. Espero que esta biografia provoque muitas outras destas figuras e que iluminem este el-rei complexo, porque é disso que se trata. De gosto, de personalidade, de ação, D. João V é um diamante por lapidar e ainda estamos encadeados pela luz refletida do seu brilho para o vermos em toda a sua extensão.”

'El-Rei Eclipse'
Pedro Sena-Lino
Contraponto
703 páginas

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Palavra que conta

É o trabalho que faltava para explicar Abril, pode dizer-se. O general Eanes tem-se recusado a falar com esta latitude, mas Fátima Campos Ferreira conseguiu convencê-lo e passou esse testemunho a livro. Regista a autora na Nota pessoal que “a biografia de António Ramalho Eanes está contada”, é verdade, mas faltava “contar” o outro lado, o que se obtém através de uma conversa sem limites e o resultado está à vista e vai por passos que tanto se referem a Deng Xiaoping e a Putin como ao Ocidente, à realidade nacional das últimas décadas e também “aos pequenos êxitos dos portugueses”. Queria-se ouvir mais sobre o passado colonial, que o militar percorreu em sucessivas comissões; sobre o legado da Revolução, a deriva do 25 de Novembro de 1975, e o general fez a vontade. Sobre esta data diz o seguinte: “Não percebo que estigmatizem o 25 de Novembro, porque é a continuação do 25 de Abril”. Uma entrevista que reproduz uma visão presidencial, que não ignora a diminuição constante do poder dos militares no seu papel de defesa nacional, a estagnação da vida partidária nacional, nem a falta de uma resposta à exigência que Abril teria obrigado, deixando um desafio sobre a situação nacional que, nas suas palavras, “merece séria preocupação”. Um vol de oiseau a que o general se permitiu e a autora explorou ao máximo possível.

'Ramalho Eanes'
Fátima Campos Ferreira
Porto Editora
233 páginas

Regresso à viagem

Já muito se escreveu sobre a peregrinação oriental e egípcia de Eça de Queiroz após o convite para assistir à inauguração do Canal do Suez. Mas, se muito se tem (re)publicado, surge agora uma história muito mais completa sobre essa viagem e o que dela resultou. A investigadora Teresa Pinto Coelho faz ela também uma intensa peregrinação e o que finalmente desvenda ao pormenor e repleto de informações preciosas, pode dizer-se que é o trabalho final sobre essa aventura pessoal e literária.

'Eça de Queiroz no Egito'
Teresa Pinto Coelho
Tinta da China
367 páginas

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