Berlinale - Histórias de Nova Iorque
Um conto surreal sobre um homem que ganha um novo rosto e uma visita a uma cozinha de um grande restaurante em Times Square. A Different Man, de Aaron Schimberg e La Cocina, de Alonso Ruizpalacios, colocam-nos na efervescência de Nova Iorque e confirmam o bom arranque do festival.
Em A Different Man acompanhamos a vida de Edward, um homem com rosto deformado que depois de um processo medicinal ganha o rosto de um galã de Hollywood. A sua vida muda mas a frustração interior parece não cessar. Tudo fica mais bizarro quando descobre que a sua anterior vizinha está a fazer uma peça sobre a sua vida. De repente, através de uma máscara com o seu visual antigo, acaba por ser ele o escolhido para entrar nesse espectáculo como protagonista.
Vindo do Festival Sundance já como uma dose considerável de aclamação, eis um filme que faz do seu surrealismo uma proposta refrescante de abordar temas como o ideal da beleza na nossa sociedade e doença urbana da solidão. Na verdade, Schimberg, ele próprio com uma doença de pele no rosto, está a fazer uma fábula hilariante sobre a miséria humana. Brinca com as vaidades dos atores, com os tiques do teatro independente norte-americano e é “punk-rocker” na atitude de mostrar uma Nova Iorque de bares íntimos e com fumo. Dir-se-ia que é o tipo de filme que fazia falta à Berlinale, cinema com ideias de argumento, inventivo, chocante e com uma força narrativa disruptiva-
A Different Man pode viver de referências a O Homem Elefante ou A Bela e o Monstro, mas, na essência, é uma meditação sobre todos termos o nosso monstro dentro de nós. Uma meditação tão “offbeat” que por vezes parece transpor o espírito dos filmes de Charlie Kaufman no qual está inscrito um compêndio sobre as maravilhas e as tragédias do karma. Fundamental também ter atores como Renate Reinsve, que já brilhava tanto em A Pior Pessoa do Mundo, Sebastian Stan, a provar que merece o tão ansiado papel de jovem Trump em The Practice, de Ali Abassi e Adam Pearson, ator desfigurado pela mesma doença da sua personagem, candidato sério ao Urso de melhor ator.
Ruizpalacios filma Rooney Mara de forma mágica
Das cores quentes deste “homem sem rosto” para os rostos a preto e branco de uma metáfora sobre a emigração na América, o primeiro filme em língua inglesa de Alonso Ruizpalacios, La Cocina, protagonizado por Rooney Mara num dos grandes desempenhos da sua carreira. São cerca de duas horas num dia dentro de uma cozinha gigante de um restaurante de grelhados em Times Square. Pede-se ebulição e temos ebulição nesta adaptação da peça de Arnold Wesker em que a câmara é a personagem principal em bailados milagrosos pelos corredores do restaurante em planos-sequência que têm uma potência que só numa sala de cinema será possível comprovar. Filme de um só fôlego capaz de momentos geniais amarfalhados com detalhes cabotinos – há personagens a gritar a mais e coisas que se repetem.
La Cocina apenas não ascende ao estatuto da excelência por Ruizpalacios parecer querer imitar a proeza estética do outro mexicano que conquistou a América, Iñarritu. Mas, como alguém diz lá na copa, “a América não é sequer um país”. Seja como for, La Cocina é mais para quem ainda acredita na experiência da imersão numa sala de cinema do que para o “foodie” que devora os episódios de The Bear na Disney+...