Depois do Urso de Ouro o ano passado com Sobre L’Adamant, eis que de repente mais um documentário de Nicholas Philibert, Averroès et Rosa Park, recuperando alguns doentes psiquiátricos do filme premiado. Mas esta é uma sequela documental que é tudo menos “as cenas que não couberam” em Sobre L’Adamant ou mais uma outra adenda. O aclamado cineasta, alvo de homenagem da última Festa do Cinema Francês, em Lisboa, continua então a filmar doentes psiquiátricos de Paris, mas desta vez filma-os em internamento em duas alas de um hospital psiquiátrico de Paris, o Esquirol, nomeadamente a ala Averroès e a Rosa Park. E filma sobretudo os encontros e as conversas com os psiquiátricas. Conversas sobre possíveis altas, os problemas do dia-a-dia no hospital, as medicações, mas sobretudo toda a dor de estar condicionado de liberdade e de um contacto com o mundo lá fora. Temos casos de depressão austera, de tentativas de suicídio e de um grave “burn out”.Acima de tudo, está o respeito humano e a dimensão inteira de cada uma daquelas pessoas, nunca os reduzindo a “deficientes” ou a processos médicos. Essa é a grande dádiva humana de um filme que, tal como Sobre L’Adamant não faz do fascínio das doenças mentais uma curiosidade, conseguindo sim mostrar um processo médico que tenta encontrar saídas para o desespero que dali sai. E a tal dose de humanismo cinematográfico está sobretudo numa pista de se tentar perceber que alguns daqueles internados podem ter esperança num futuro fora daquelas paredes. E é aí que o filme surpreendentemente acaba por nos tocar ainda mais do que o anterior. De forma prática, este é bem mais compacto do que Sobre L’Adamant - ficamos a conhecer melhor cada um dos aqueles homens e mulheres a lutar para encontrar o seu lugar na sociedade, quase todos sufocados por uma solidão que é a grande inimiga à reabilitação. Para tal, partilha-se uma aura de observação que gere impecavelmente os tempos das conversas entre médico e paciente, uma ilusão de cinema sem cortes, bom senso do respeito perante o tom. E é por isso que estão todas as emoções à flor da pele. Se calhar, é um filme que convoca todos os géneros: comédia, investigação, drama e até musical. Forte, muito agudo.O bolo iraniano Na competição, o fim de semana em Berlim trouxe a diversidade justa. De um lado a amabilidade de My Favourite Cake, de Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha, do outro Olivier Assayas a filmar a sua intimidade em Hors du Temps. No filme iraniano, acompanhamos um dia na vida de uma senhora de 70 anos, viúva e avó, que ao sentir-se sozinha convida um senhor taxista da sua idade para ir conhecer a sua casa. A dada altura, percebemos que estamos a ver uma espécie de espartano manguito à polícia de moral iraniana, repensando o estrangulamento da mulher iraniana nestes dias. A fórmula é a da comédia romântica “fofa”, mas a simpatia do filme não anula o seu corajoso ato de denúncia e talvez por isso a ovação de pé tão demorada no Berlinale Palast fosse pela ausência forçada do casal dos realizadores: as autoridades iranianas não permitiram a vinda dos autores e os seus passaportes foram retidos. Castigo hediondo que só envergonha este Irão.Assayas só para fãs No caso de Assayas a fórmula é simples: encenar o período em que passou parte do confinamento na casa de campo dos falecidos pais juntamente com a namorada e o irmão. Vincent Macaigne representa Assayas mas a voz off é a do próprio realizador que discorre sobre cinema, a vida e a arte, não se furtando a uma certa caricatura de germofóbico e de pedante intelectual. Um piscar de olhos cheio de piada que brinca também com a sua obsessão por David Hockney. Só que o cinema na primeira pessoa pode ser também um gesto de dor e de romance - a presença da sua ex-companheira, Mia Hansen-Love, é um inesperado gancho dramático. Por muito refinadamente romântico que seja, o grande problema deste tempo suspendido de um criador a confessar tudo é o seu ar “blasé” orgulhosamente francês e sem fazer um único esforço de poder ir além da piada interna da cinefilia (e melomania, o seu irmão é um jornalista de música).O que realmente conta e imprime em Hors du Temps é a capacidade de Assayas filmar uma ideia de natureza e primavera sem peneiras nenhumas. Isso é extremamente humilde, quase a fazer redenção às sessões de metralhadora de diálogos de citações. E há também um mecanismo que interessa muito: a possibilidade do cinema poder ser um lugar de pequenas crónicas dentro de uma longa-metragem. Neste caso, crónicas dos tempos do covid. Está já comprado para Portugal...dnot@dn.pt