Batman renasce para a tragédia

O Homem Morcego está de volta às salas de cinema, agora interpretado por Robert Pattinson: realizado por Matt Reeves, o novo filme consegue a proeza de reinventar um herói assombrado por muitos fantasmas.

Aí está The Batman, uma realização de Matt Reeves, com Robert Pattinson a vestir o fato de borracha do Homem Morcego, personagem fulcral na banda desenhada da DC Comics. Como diz a gíria industrial, é a abertura da "temporada de verão", já que o marketing planetário que sustenta este tipo de produções se distingue por um poder de ocupação de salas que dispensa a coerência do calendário.

A sobrecarga informativa induzida por esse mesmo marketing conseguiu, há muitos anos, transformar qualquer lançamento do género num evento mediático que se mede, literalmente, pelos dólares envolvidos. Como se esperava, alguns dias antes da publicação das primeiras críticas ao filme, a imprensa especializada dos EUA (a começar pelo Variety, em artigo de segunda-feira) fez as suas contas e antecipou a performance "ideal" do filme no mercado americano: tendo em conta o orçamento da ordem dos 200 milhões, a Warner Bros. ficará muito feliz com uma receita de 100 milhões no primeiro fim de semana, com os mais otimistas a apontar os 140 milhões como séria possibilidade.

Na prática, está a confirmar-se a previsão de Steven Spielberg e George Lucas quando, em 2013, num debate na Universidade da Califórnia do Sul, chamaram a atenção para o tsunami comercial dos "blockbusters" e, nessa medida, o risco de implosão do mercado tradicional. Previram, por exemplo, um aumento do preço dos bilhetes para "produtos" deste género, o que, de facto, está a acontecer nas salas AMC dos EUA (como o Variety também, oportunamente, noticiou).

Um herói trágico

São dados que podemos e, creio, devemos encarar com o mais sereno pragmatismo: os filmes custam dinheiro e necessitam de garantir algum tipo de rentabilidade. Para que se façam mais filmes? Sim, certamente, mas também para garantir os postos de trabalho de todos os que integram as várias frentes do cinema, da produção à exibição.

Resta saber se ainda podemos ver e pensar um filme como... um filme, isto é, um pouco mais do que uma entrada no livro de contas de um qualquer grande estúdio. Esperemos que sim. E por uma razão muito básica: The Batman é um belo objeto de cinema, por certo dos mais brilhantes que este século XXI produziu na área dos super-heróis. Creio que poderemos mesmo considerar que esta é, não uma sequela, como é óbvio, mas uma derivação conceptual do espaço de reflexão e espetáculo aberto pelo admirável Joker (2019), de Todd Phillips, com Joaquin Phoenix.

Não se trata do Joker, entenda-se. Sempre empenhado na defesa da lei e da ordem em Gotham City, Batman surge envolvido numa teia de enigmas, pontuados pelos assassinatos cometidos pelo implacável Riddler (Paul Dano), ao mesmo tempo que os seus caminhos se cruzam com Selina Kyle/Catwoman (Zöe Kravitz), também ela uma vingadora, ainda que com diferentes motivações. No limite, o milionário Bruce Wayne vê ameaçada a sua condição secreta de Batman e, mais do que isso, depara com uma série de factos inquietantes sobre a história política da sua cidade capazes de pôr em causa a memória imaculada da sua família...

Batman reencontra, assim, uma turbulência emocional que lhe confere a dimensão clássica de um genuíno herói trágico. Dir-se-ia um renascimento que, paradoxalmente (mas é esse o paradoxo da tragédia), o aproxima da loucura que o fator humano pode conter. As razões do seu combate pela justiça vão sendo marcadas por elementos irracionais que contaminam todas as ambiências do filme de Matt Reeves, numa lúgubre paleta cromática rigorosamente elaborada pela direção fotográfica de Greig Fraser.

Intimidade e música

Há qualquer coisa de conto moral sobre a verdade em The Batman: a palavra de ordem dos cartazes promocionais é mesmo "desvenda a verdade". No seu delírio artificioso, o gosto abstrato deste tipo de universos envolve, afinal, outro paradoxo: do clássico paralelismo entre Gotham City e Nova Iorque até ao desencanto face às atribulações do mundo da política, os fantasmas dos super-heróis ecoam, com perversa ambiguidade, sentimentos e ânsias do nosso presente.

Estamos perante um filme cuja evidente sofisticação técnica não gera uma narrativa que se reduza a uma banal acumulação de efeitos (ditos) especiais. Nesta perspetiva, com The Batman, a DC Comics bate de modo concludente a Marvel que, pelo menos nas produções mais recentes, se tem especializado na ostentação pueril de um estilo alheio ao prazer da aventura - entenda-se: ao gosto de contar histórias.

Definitivamente adulto no seu modo de estar e representar, Robert Pattinson compõe um Batman tão sedutor quanto indecifrável. Além do mais, mantendo uma bela química dramática com a também excelente Zöe Kravitz - as suas cenas possuem uma vibração intimista rara em filmes de super-heróis.

Enfim, um verdadeiro acontecimento dentro de outro acontecimento é a música de Michael Giacchino. Tido como especialista de filmes de animação - ganhou um Óscar com a banda sonora de Up-Altamente (2009) -, compõe aqui uma verdadeira sinfonia, exemplarmente adequada aos fantasmas que assombram este vingador humano, demasiado humano.

dnot@dn.pt

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