Quer queiramos, quer não, quase sempre quando pensamos no tratamento do colonialismo português no cinema do nosso país, sentimos que tal tratamento tem qualquer coisa de deficitário. Em boa verdade, não é uma questão interior à produção cinematográfica, mas um dado transversal à nossa sociedade - e ao modo como lidamos com as memórias traumáticas da nossa história coletiva. Margarida Cardoso é alguém que não tem desistido de lidar com esse problema, revisitando os tempos coloniais em filmes de ficção como A Costa dos Murmúrios (2004), a partir do romance de Lídia Jorge, ou Yvone Kane (2014), sem esquecer o documentário Sita - A Vida e o Tempo de Sita Valles (2022). O seu trabalho mais recente, Banzo, aí está a confirmar a coerência de tal trajetória.Descobrimos, assim, a figura de Afonso (Carlotto Cota), um médico que, em 1907, chega a uma ilha da costa africana para tratar os “serviçais” que sofrem de uma doença conhecida como banzo. Como se escreve na sinopse oficial do filme, manifesta-se como a “nostalgia dos escravizados”, que acabam por morrer “às dezenas de inanição ou suicidando-se” - a pouco e pouco, mais do que um problema da medicina, o banzo vai-se instalando como tragédia de civilização.. Eis um pormenor que vale a pena sublinhar: Banzo foi rodado em S. Tomé e Príncipe mas, de facto, o filme não explicita, ou melhor, não dá um nome ao lugar dos acontecimentos (em parte inspirados no documentário Understory, sobre a história económica e cultural do cacau, realizado por Margarida Cardoso em 2019). Quer isto dizer que a “epidemia”, através da minuciosa descrição dos seus efeitos, apela também à parábola política.Daí a clara demarcação de Banzo em relação a qualquer caracterização maniqueísta da situação, evitando reduzir as personagens a meros “locutores” de determinadas ideias ou militâncias. Aliás, as ambivalências que pontuam as suas relações - nomeadamente na gestão do hospital dirigido pelo Dr. Figueira (João Pedro Bénard) - acabam por instalar uma rede de estranhos silêncios. No limite, a presença da morte naqueles cenários tropicais contraria as facilidades de qualquer efeito pitoresco.Banzo é mesmo um filme sem centro (dramático), já que o domínio colonial se confunde, aqui, com um entorpecimento das relações humanas. Não que isso oculte as marcas de um sistema de clara divisão entre senhores e servos. Através de uma mise en scène de acontecimentos minimalistas e sublinhados discretos, Margarida Cardoso dá conta desse sistema, libertando o seu filme para uma visão em que cada um existe como fantasma, dominante ou dominado - a dimensão utópica do colonialismo confunde-se, assim, com a suspensão da própria ideia de civilização..'O Brutalista' - A América de todas as utopias .'De Volta à Ação' - Espiões em segunda mão