João Botelho, 76 anos (nasceu em Lamego, a 11 de maio de 1949), continua a praticar o cinema como um exercício que não é estranho a desejos infantis. A infância é mesmo esse território de múltiplos assombramentos em que o divertimento, ao contrário do “entretenimento” televisivo que nos afoga em avalanches de mediocridade, pode ser a coisa mais séria do mundo. Assim volta a acontecer no brilhante e desconcertante As Meninas Exemplares, inspirado na obra da Condessa de Ségur (1799-1874), filme com ante-estreia marcada para esta sexta-feira, no LEFFEST, extracompetição (Cinema São Jorge, 21h45).Estamos mesmo perante um objeto que nos obriga a reavaliar a noção de “ante-estreia”. Desde logo, porque As Meninas Exemplares já teve uma primeira exibição, em Bragança; depois, porque não se trata de antecipar a sua entrada no chamado circuito comercial, mas sim de lançar uma temporada de exibições pensada para lá dos formatos convencionais desse circuito.Não é um pormenor secundário, quanto mais não seja porque a difusão do cinema em Portugal continua a ser um problema de incontornável urgência cultural, embora pareça politicamente adiado. Neste contexto, Botelho e o seu produtor Alexandre Oliveira anunciaram que vão repetir com As Meninas Exemplares uma estratégia já experimentada em 2010, com Filme do Desassossego, baseado em Fernando Pessoa. A saber: a partir de agora e até 2016, o novo filme vai passar por cineteatros e auditórios municipais, apostando em formas alternativas de informação e sensibilização do público, incluindo o diálogo com os espetadores - Leiria, Coimbra, Vila Real e Porto são algumas das cidades com sessões já agendadas.Semelhante desafio decorre da singularidade estética e simbólica de As Meninas Exemplares. Eis um filme que não é apenas inspirado num universo “exterior” - a pintura de Paula Rego -, mas que se apresenta em comunhão artística com esse universo. Com o apoio da Casa das Histórias Paula Rego e da Fundação Calouste Gulbenkian, cada sessão terá a “companhia” de uma exposição de obras da pintora; no caso do Batalha Centro de Cinema no Porto, por exemplo, essa exposição manter-se-á entre 4 de dezembro e 18 de janeiro. .As Meninas Exemplares tem já sessões agendadas para várias cidades, incluindo Leiria, Coimbra, Vila Real e Porto.. As citações estão lá, como é óbvio - afinal de contas, a pintura de Paula Rego existe como um país do qual podemos regressar trazendo imagens concretas, recheadas de detalhes de delirante precisão. Nos seus corpos adultos, as meninas do filme (interpretadas por Rita Durão, Catarina Wallenstein, Crista Alfaite e Joana Botelho) evocam várias poses femininas dos quadros de Paula Rego, nomeadamente da série Aborto. Mas não se trata de fabricar “cópias”. À maneira de Godard, Botelho gosta de explorar a citação como recriação amorosa, com especial destaque para as referências à filmografia de Manoel de Oliveira - lembremos a imagem do olho que espreita pela fechadura, remetendo para a abertura de O Passado e o Presente (1972) ou a roda da carruagem à maneira de um plano emblemático de O Dia do Desespero (1992).Teatro & cinemaO que mais conta, e mais liga o filme à nitidez selvagem da figuração de Paula Rego, é o entendimento do cinema como uma arte de manipulação do mundo - ou criação de um mundo novo -, muito para lá de qualquer simplismo naturalista. Daí que As Meninas Exemplares possua uma ambígua teatralidade (em tudo cúmplice da herança de Oliveira) em que a inocência das brincadeiras narradas em Os Desastres de Sofia, e outros livros de Ségur, se vai confundindo com tentações sem nome, sempre insolitamente humanas.Impossível, também por isso, rotular As Meninas Exemplares a partir de qualquer modelo corrente de fazer (e consumir) cinema. Ainda assim, apetece ceder a mais uma tentação e dizer que perpassa pelo trabalho de Botelho a nostalgia da pureza formal de algum cinema mudo. Não apenas através do clima burlesco ou da aceleração dos gestos, mas pelo modo como a representação se assume e apresenta como artifício partilhável. Aliás, há mesmo uma “narradora” (Victoria Guerra) acompanhada por um pianista (André Piolanti) - sem esquecer que a alegria paradoxal da música composta por Daniel Bernardes nos ajuda a perceber que a existência humana tem tanto de maravilhoso como de precário..'The Running Man'. O apocalipse está na televisão.'Frankenstein' à deriva na Netflix